Símbolo da utopia, Brasília vira ruínas em obras de artistas

Telas retratando destruição da capital assinadas pelo próprio Niemeyer chegam a SP

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São Paulo

Brasília em ruínas. A capital federal, símbolo máximo da utopia modernista no país, surge destroçada nas duas telas de Oscar Niemeyer que abrem "Territórios da Criação", exposição do arquiteto em cartaz no Instituto Tomie Ohtake.

Pintadas por Niemeyer em Paris, em 1964, como reação do arquiteto às notícias do golpe militar, elas retratam as colunas em forma de âncora do Palácio da Alvorada —descritas pelo escritor André Malraux como o elemento arquitetural mais importante desde os pilares gregos— tombadas sobre o horizonte negro.

Os quadros são quase desconhecidos do público. Marcus Lontra, um dos organizares da mostra que foi enteado do arquiteto e herdou os trabalhos, calcula que um deles tenha sido exposto pela primeira vez em 2010, dois anos antes da morte de Niemeyer, em uma exposição comemorativa dos 50 anos de Brasília. É a primeira vez, contudo, que elas vêm a São Paulo.

"Niemeyer tinha vergonha das pinturas", afirma Lontra. "Por muito tempo, ele, que era uma pessoa muito privada, teve dificuldade de mudar o status de arquiteto para intelectual que lhe era cobrado pela mídia. Por isso, tinha muito cuidado com o que dizia e mostrava. Só anos mais tarde começou a relaxar", acrescenta.

As telas são das raras representações da capital federal arruinada na iconografia do país. Com exceção de uma ou outra obra de arte contemporânea, mesmo os protestos que tomaram o centro do poder federal nos últimos anos não foram capazes de macular a imagem da cidade perfeitamente planejada, resplandecente em suas linhas sinuosas.

Elas funcionam como uma espécie de prólogo lúgubre para "Territórios da Criação", uma mostra solar em todos os outros aspectos.

Organizada em 2017 para comemorar os 110 anos de nascimento do arquiteto, a exposição chega a São Paulo depois de ter passado por Rio de Janeiro e Brasília. O objetivo é apresentar faces menos conhecidas de Niemeyer, que também se aventurou por campos como o design de móveis, a edição de revistas, entre muitos outros.

Mais do que isso, porém, a exposição retrata Niemeyer como um sinônimo do Brasil moderno.
Do sambinha que toca ao fundo —letras do próprio arquiteto que misturam, em doses iguais, bossa nova e comunismo— a seus clássicos desenhos de mulheres nuas e curvilíneas, incluindo trabalhos de artistas que dialogam com as criações do arquiteto, a trajetória de Niemeyer é narrada de modo a espelhar a história da cultura do país no século 20.

A presença mais importante da exposição nesse sentido são os desenhos de ícones de sua arquitetura espalhados pelo território. Estão lá o Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte; a Oca, no parque Ibirapuera, em São Paulo; e o Museu de Arte Contemporânea, em Niterói, vizinha ao Rio de Janeiro.

Símbolos que, junto a Brasília, permanecem imaculados no imaginário nacional.

É essa inviolabilidade que o cubano Carlos Garaicoa desafia em sua mostra individual inaugurada na galeria Luisa Strina na esteira da SP-Arte.

"Queria abordar essa contradição da visualidade moderna brasileira, que é linda em termos de forma e teoria, mas que não parece dialogar com a realidade social do país", afirma o artista.

Em "Paisajes de Trabajo", série que dá nome à exposição, Garaicoa intervém em três projetos de Niemeyer, o Palácio da Justiça, a praça dos Três Poderes —ambos na capital federal— e o Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, que Garaicoa chama de "proto-Brasília".

Reproduzidos em plantas baixas em mesas de madeira, os projetos são "agredidos", nas palavras do artista, com instrumentos como cigarros, em "Justiça", por bisturis e outras ferramentas cirúrgicas, em "Poder", culminando com furadeiras elétricas em "Dança", este uma representação da Casa do Baile, na Pampulha.

A ideia, explica o cubano, é tornar visível na superfície da arquitetura de Niemeyer as agressões de um Estado que ele enxerga contaminado pelo autoritarismo e por dirigentes "inadequados para falar por nós".

"Talvez mais do que paisagens de trabalho, as obras sejam paisagens contemplativas, que convidam as pessoas a refletir sobre os acontecimentos de hoje."

A quarta e mais brutal "paisagem de trabalho" da exposição não se refere a um projeto de Niemeyer, mas a uma obra do período da ditadura.

Nela, a planta do imóvel colonial conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde funcionou uma Delegacia de Ordem Política Social, é manchada de vermelho-sangue e destruída por serrotes e chaves de fenda.

"Quando pensei a exposição, queria discutir o sonho da modernidade que começou nos anos 1920, na América Latina, e culminou nas revoluções artísticas e sociais dos anos 1950", diz Garaicoa.

"E aí tem uma história outra, que de alguma maneira quebra essa ideia de utopia e crença em novos ideais da modernidade, que acontece com as ditaduras", afirma o artista, acrescentando que, dois dias antes da abertura da exposição, em 31 de março, o presidente Jair Bolsonaro determinou a comemoração do golpe militar, ocorrido naquela mesma data há 55 anos.

Também Niemeyer, comunista convicto e autoexilado durante o período, encontra no golpe um ponto de inflexão em sua trajetória.

Em uma linha do tempo da própria obra desenhada a lápis, exibida lado a lado com o par de "Ruínas de Brasília" na exposição no Tomie Ohtake, ele rabisca uma explosão negra, à caneta, no ponto correspondente ao golpe —"1964", sublinha Niemeyer. "A ditadura."

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