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João Carrascoza costura relações familiares em novos livros

Últimas obras do autor, romance e coletânea de contos infantis nascem de mesma matéria-prima

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São Paulo

​Como resumir a relação entre dois irmãos em apenas uma cena ou uma frase? Talvez com aquele beliscão escondido, ainda na infância, quando os pais não estão olhando. Ou, então, com um abraço demorado, depois de anos que ambos não se veem. O escritor João Anzanello Carrascoza resume os irmãos desta forma: “Agora quem usa as roupas dele sou eu”.

O microconto “Meu Irmão Cresceu” é um dos 22 textos que compõem o livro infantil “Vamos Acordar o Dia?”, lançado no fim do ano passado —cada um deles cria uma história curta, de apenas uma linha, mas que condensa um certo olhar infantil em relação à vida e ao mundo.

“É um livro para crianças, mas que tenta também acordar o espírito menino do adulto que for ler com seu filho, lembrar um tempo em que brincávamos com a linguagem, quando tínhamos uma percepção infantil do dia a dia. Porque crescer é como fechar os olhos para certas coisas”, diz Carrascoza.

Ilustração de Sandra Jávera no livro "Vamos Acordar O Dia?"
Ilustração de Sandra Jávera no livro "Vamos Acordar O Dia?" - Reprodução

Mas o microconto do livro infantil vai além: ele extrapola o universo da criança para servir de introdução ao novo romance adulto do escritor, “Elegia do Irmão”, sobre uma relação fraterna que está prestes a se esfacelar.

Na história, Mara recebe o diagnóstico de uma doença grave e logo o leitor é informado de que ela não vai sair viva dos tratamentos invasivos. Dividida em duas partes, a narrativa mostra primeiro a relação dela com o irmão durante o diagnóstico, a rotina de exames e remédios, até o fim. Na segunda, ele fala sobre essa ausência.

Como no microconto, é como se o irmão narrador usasse a partir de então as roupas de Mara —mas não só: vestisse também as suas lembranças, a sua mania de arrumar a geladeira, os seus defeitos. “Irmãos geralmente crescem um ao lado do outro, comem no mesmo horário, frequentam a mesma escola. Existe todo um mundo que pertence só a eles. Quando um morre, isso tudo desaparece”, afirma.

O romance pode ser resumido também por outro microconto de “Vamos Acordar o Dia?”. Escreve Carrascoza em “Família”: “Uma história costurada na outra”.

Em “Elegia do Irmão”, a vida dos dois irmãos é contada com capítulos curtos, de no máximo duas páginas, que funcionam como fragmentos que são costurados. 

A sensação é reforçada pelas ilustrações da capa e das páginas internas, produzidas a partir de linhas cosidas no papel, como se tivessem sido feitas por um bordado. Juntos, os pontos e costuras ganham a forma de duas mãos, cujos dedos seguram um barbante trançado entre eles e brincam de cama de gato. 

“A morte traz à tona essas memórias, que vêm em fragmentos. Porque, quando a pessoa está viva, você não se lembra de tudo, está mais preocupado em cuidar, em resolver coisas práticas. É a ausência que faz brotar as lembranças, é o que une as pontas.”

Os fios que conectam os dois livros não são apenas a mesma temática familiar que perpassa grande parte da obra de Carrascoza, autor de diferentes contos e romances que giram em torno da relação entre filhos, pais, avós, irmãos —caso de “Aos 7 e aos 40” e “Caderno de um Ausente”, por exemplo (ambos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura; o último também vencedor do Jabuti).

“Vamos Acordar o Dia?” nasceu a partir de um livro adulto de microcontos, “Linha Única”, publicado em 2016 pela editora Sesi-SP, que compila 120 histórias breves. “Para chegar à seleção final que acabou sendo publicada, escrevi mais de 600 pequenos contos. Alguns deles tinham um ar infantil e acabaram sendo o embrião do novo livro”, conta.

Embora seja composta por textos independentes, a obra para os pequenos apresenta certa unidade. Tem início com a criança acordando, passa pela manhã, pelas brincadeiras da tarde, até finalmente chegar à noite, às estrelas, ao ronco do vovô e à hora de dormir.

Retrato do escritor João Anzanello Carrascoza
O escritor João Anzanello Carrascoza - Marcos Vilas Boas/Divulgação

Pode parecer estranho esse equilíbrio entre o universo infantil e o mundo adulto, ainda mais quando o romance gira em torno da morte e da ausência. Mas é bom lembrar que Carrascoza estreou na literatura justamente com uma obra infantojuvenil.

Antes de publicar “Hotel Solidão” (1994), que o colocou no rol dos contistas contemporâneos, ele já havia lançado pela Melhoramentos “As Flores do Lado de Baixo” (1991), romance indicado para crianças já próximas da pré-adolescência —o primeiro romance adulto mesmo, “Aos 7 e aos 40”, chegaria às livrarias apenas em 2013.

“No fundo, escrever para crianças ou para adultos é a mesma coisa. Até porque a minha literatura infantil ou infantojuvenil também aborda temas como o sofrimento, o aborrecimento, as tristezas. Não é uma história de fantasia, alheia à vida.”

Para o escritor, a literatura para adultos funcionaria como um sonho complexo, cheio de degraus e níveis. Já as histórias para crianças seria uma espécie de sonho mais feliz, iluminado —mas ambos feitos da mesma matéria-prima que conecta toda a sua obra: a família e os afetos.

Dores, rupturas, ausências e silêncios se embaralham por árvores genealógicas comuns aos seus romances, contos e mesmo às micro-histórias. 

É como se fossem um novelo de lã. Mas com uma ponta solta que, se puxada, sempre tem a infância como origem.

“É a época fundadora da nossa existência, quando acontecem quase todas as nossas primeiras vezes. Depois, você pode até ressignificar as experiências, mas essa construção parte de um ponto inicial, criado quando éramos crianças”, afirma.

Ou, como define em um dos microcontos que fazem parte do livro “Linha Única”, a infância é a “alegria cercada de dores por todos os lados”.

Elegia do Irmão

  • Preço R$ 49,90 (152 págs.)
  • Autoria João Anzanello Carrascoza
  • Editora Alfaguara

Vamos Acordar o Dia?

  • Preço R$ 43 (48 págs.)
  • Autoria João Anzanello Carrascoza
  • Editora SM
  • Ilustradora Sandra Jávera
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