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Novo filme de Terrence Malick é menos pretensioso e mais focado

'A Hidden Life' foi recebido com entusiasmo no Festival de Cannes

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Cannes (França)

Terrence Malick não está aqui. E não poderia ser diferente com um cineasta que tem na reclusão o seu mais conhecido epíteto. Não veio ouvir o entusiasmo com que “A Hidden Life”, seu mais recente filme, foi recebido no Festival de Cannes.

A revista especializada Variety cravou que é o seu melhor filme desde o premiado "A Árvore da Vida". É certo que é menos pretensioso. Mais focado (aqui trata das privações da guerra, e não do sentido da existência), Malick consegue desenvolver melhor suas questões, sobretudo o duelo entre fé e religião.

Num vilarejo bucólico nos Alpes austríacos vive o jovem casal Franz (August Diehl) e Franziska (Valerie Pachner), imersos em atividades pastoris, pretexto para que o diretor se esbalde em suas características tomadas de sóis poentes e relvas lambidas pelo vento.

Mas há um turbilhão ao redor, mostrado por meio de imagens documentais de Hitler marchando sobre Berlim. E com a Áustria logo anexada à Alemanha, Franz é recrutado para lutar pelo Eixo. Só que, dotado de certo senso de decência, ele não quer cerrar fileiras com nazistas —e uma breve experiência no front só o tornará mais convicto.

“E se os verdadeiros heróis são os que estão se defendendo contra nós?”, indaga o personagem. Ele parece sozinho.

Não é simples dizer não à guerra, claro. No outrora harmônico povoado, formado por caipiras fanfarrões, o patriotismo ficou inflamado e o ódio ao inimigo que vem de fora também. O prefeito brada contra um mundo degradado e o excesso de imigrantes na rua — sinal do que parece ser Malick alertando contra a virulência do homem comum do mundo de hoje.

É nesse ambiente agora crispado que o rapaz terá de sustentar sua objeção de consciência. Mas oficiais nazistas logo descobrem sua recusa e vão pedir satisfações. E o povo do vilarejo começa a espezinhar Franziska até que a situação se torne insuportável.

Ao longo de três horas, o cineasta exibe a via crucis do casal, entremeando belas cenas no campo às aflições da tortura nas prisões onde Franz é metido. Tudo é costurado por observações de caráter espiritual sobre a presença de Deus num mundo que caminha para o colapso.

Malick começou a carreira como um elogiado cineasta bissexto nos anos 1970. Em 1998, rompeu um hiato de 20 anos e voltou a dirigir, com “Além da Linha Vermelha”. Desde então despejou um punhado irregular de obras, que vão do frívolo “De Canção em Canção” ao pretensioso “Árvore da Vida”.

Também na disputa pela Palma de Ouro, dois títulos do gênero noir, muito distintos entre si, ganharam discreta aprovação.

O chinês “The Wild Goose Lake”, de Diao Yinan, é uma exuberante produção policial que, se não encanta por seu enredo algo manjado, surpreende por sua direção espetaculosa.

A história, que basicamente consiste em acompanhar um gângster fugindo de outros gângsteres e da polícia, é pretexto para conduzir o espectador por ruas encharcadas, restaurantes imundos, mercados de pulgas e outros ambientes que escancaram uma China em permanente mutação.

Diao, que venceu o Urso de Ouro por “Carvão Negro, Gelo Fino”, mostra domínio de sua técnica em cenas de perseguição e violência que despertaram gritinhos de surpresa em parte do público.

Outra história sobre máfia, “La Gomera”, do romeno Corneliu Porumboiu, também despertou alguma reação dos espectadores, mas nenhum entusiasmo triunfal. Seu tom cômico, aliás, destoa da produção daquele país — ao menos da que dá as caras em festivais de cinema de arte e que é frequentemente densa e pesada.

O enredo labiríntico acompanha a jornada de Cristi, policial corrupto em Bucareste que se envolve numa trama que inclui femmes fatales com o sugestivo nome de Gilda, criminosos que se comunicam por assobios e colchões recheados de dinheiro.

Fora da competição pela Palma de Ouro, dois filmes americanos com DNA brasileiro fizeram a sua estreia no festival, ambos produzidos pela paulista RT Features —o drama LGBT “Port Authority”, da estreante Danielle Lessovitz, e o terror “The Lighthouse”, de Robert Eggers, do elogiado “A Bruxa”.

Na seção Um Certo Olhar, dedicada a obras menos convencionais ou diretores menos conhecidos, o filme de Lessovitz transformou o tapete vermelho numa passarela de kiki, os bailes nova-iorquinos que servem de refúgio a travestis e transexuais na noite nova-ioquina.

Montadíssimos, os atores do longa subiram as escadas com vestidos brilhosos e fazendo passos do voguing, estilo marcado pelas poses exageradas que imitam o andar de modelos. Uma das atrizes, num hiperlongo vestido vermelho, teve de ter a cauda amparada por dois homens.

A trama de “Port Authority”, uma espécie de “Romeu e Julieta” transex, é ambientada nesse mesmo universo e a produção, com quê documental, incorpora no elenco vários nomes da cena kiki, a começar por Leyna Bloom, primeira atriz negra e transexual a protagonizar um filme em Cannes.

O título do longa se refere ao terminal de ônibus em Manhattan onde desembarca Paul (Fionn Whitehead, de “Dunkirk”), garoto-problema vindo do interior. Sem ter um teto onde dormir, ele vai parar num abrigo no Harlem e não demora para se encantar por Wye, vivida por Bloom.

Estrela nos bailes kiki, ela divide apartamento com sua família postiça, formada por outras sete pessoas, todas membros da comunidade LGBT e igualmente depauperadas.

Já “The Lighthouse” é um terror em preto e branco centrado no embate entre os dois únicos personagens da história —​ um rabugento Willem Dafoe e um contido Robert Pattinson—que precisam cuidar de um farol isolado.

A atmosfera lúgubre é convite para Robert Eggers explorar com maestria a escalada da tensão psicológica entre os dois, digna dos melhores contos góticos de Edgar Allan Poe.

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