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Marina Abramovic faz religião da arte, diz psicanalista

Documentário sobre incursões esotéricas da performer no Brasil foi debatido na terça-feira (13)

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São Paulo


Com olhos fechados e ouvidos tampados, uma procissão heterogênea caminha, lentamente, para dentro de um espaço. Cada um dos presentes se posiciona, meditativo, junto a um cristal fincado em uma superfície de madeira — segurando a pedra, repousando seu rosto ali ou se prostrando diante dela.

O que pode parecer um ritual religioso é, na verdade, parte do trabalho mais recente da artista sérvia Marina Abramovic no Brasil, feito em 2015. Chamado de “Método Abramovic”, ele foi o ponto alto de um processo gradual no qual a artista —conhecida, desde os anos 1960, por se submeter publicamente à dor e à vulnerabilidade— passou a se retirar da própria obra e a oferecer o protagonismo ao público. 

A decisão de Abramovic decorreu da maturação de duas viagens esotéricas feitas ao Brasil, em 2012 e 2013. Motivada, em parte, a expurgar o sofrimento causado pelo fim de um relacionamento, a artista tomou ayahuasca, passou dez dias no centro espiritual do médium João de Deus, se consultou com curandeiras e participou de rituais xamânicos. 

A trajetória está documentada no filme “Espaço Além”, narrado por Abramovic, que foi exibido e debatido em evento organizado pela pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pelo Museu da Imagem e do Som, com apoio da Folha, nesta terça-feira (13).

“A arte, como Marina a pratica, é religiosa”, afirmou o psicanalista João Frayze-Pereira no debate. Ele remeteu à origem etimológica da palavra religião —religar— para argumentar que a artista busca reconectar o ser humano ao próprio corpo, em um processo criador imanente. “Não é uma coisa do além. É no próprio corpo, porque nós somos alienados dele.” 

Na visão de Frayze-Pereira, que também é crítico de arte, Abramovic sempre buscou a transcendência levando seu corpo para além dos limites da dor, da exaustão e do perigo, em um projeto de expansão da vida e da arte aos seus extremos. “Se arte é criação, e não há criação sem destruição, não há separação entre arte e dor”, ponderou.

Na cena dos cristais, que encerra o documentário, Abramovic dá a entender que a arte não é necessária na natureza, mas nas cidades, onde o cotidiano é mecânico, agressivo e não abre brechas para a comunhão, a contemplação ou o misticismo. A arte seria, portanto, a religião dos que não têm religião, resumiu o jornalista Silas Martí.

Editor do núcleo de cultura da Folha, Martí participou do “Método” e entrevistou Marina Abramovic mais de uma vez. Ele situou o que chama de “fase esotérica” da artista como um passo além do clímax de sua carreira, alcançado por volta de 2010 com o lançamento do primeiro documentário sobre ela: “A Artista está Presente”, de tom por vezes hagiográfico.

“Ela já tinha feito tudo. Já tinha se cortado, se descabelado, deitado dentro de um círculo de fogo”, disse Martí. “Essa busca pelo espiritual reflete a transição do mundo para um lugar em que a arte vira objeto não só de contemplação, mas de devoção — a busca [do público] por algo além diante de um objeto de arte ou de uma performance.”

Ele apontou também o incômodo causado pela espetacularização que o sistema da arte cria em cima desse tipo de obra espiritualizada, o que chamou de “meditação de butique”. “A leitura que temos [da arte] é cada vez mais filtrada pelo mercado. A partir do momento em que ela faz um clipe com o Jay-Z, por exemplo, ela não está nesse lugar da meditação sacra.”

Para Marco del Fiol, diretor do documentário que também estava presente no debate, são essas contradições que tornam Abramovic interessante. “Ela conjuga coisas muito improváveis. Internamente, tem um campo muito grande de experiências, desejos e realizações”, afirmou.

Del Fiol contou que as viagens ao Brasil foram um ponto de virada na vida da artista. Antes delas, comparou, as performances de Abramovic se assemelhavam à estrutura de João de Deus —uma figura ascética exposta diante de um público passivo. Ironicamente, foram as incursões espirituais da artista que permitiram que ela se dessacralizasse em seu trabalho. Hoje, disse o diretor, “o que ela faz é uma imantação do espaço, ela cria campos magnéticos com o exercício da presença”.

Ainda que o centro espiritual de João de Deus tenha sido “um parque de diversões” para Abramovic, pela profusão de “cirurgias” feitas pelo médium nos corpos de seus pacientes —sem anestesia e na frente de todos os hóspedes—, o filme foi muito difícil para a artista, envolveu brigas e exigiu negociações.

Na primeira vez em que toma ayahuasca, por exemplo, Abramovic é filmada nua, vomitando de quatro em meio à floresta após duas doses do líquido. Em outra cena, ela diz para a câmera, de olhos fechados e voz embargada, que não quer morrer de amor. 

Se, por um lado, o filme funciona como extensão de suas performances e tem na artista não um objeto de estudo, mas uma colaboradora integral, por outro, ele expõe momentos inéditos de humanidade que ocorrem fora do seu controle. “Isso é muito mais interessante do que botar a pessoa num pedestal”, disse del Fiol.

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