Descrição de chapéu Artes Cênicas

Peça de Otavio Frias Filho vai ao antigo Egito para tratar do vício em impor ideologias

'Tutankáton' aborda revolução monoteísta e como ela moldou os costumes

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A atriz Monalisa Silva caracterizada como Ankesen na peça ‘Tutankáton’ Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Numa sala comprida, o Egito antigo parece estacionado no tempo. Caixas espalhadas pelo chão e dependuradas do teto embalam artefatos de uma velha civilização, como peças de museu aguardando serem expostas. 

Isso porque a ideia de tempo, tanto do real quanto do imaginário, está no cerne de “Tutankáton”. A peça escrita há quase 30 anos por Otavio Frias Filho, ex-diretor de Redação da Folha, ganha nesta semana sua primeira montagem, com direção de Mika Lins.

Quando escreveu o texto, em 1990, o jornalista estava inspirado por um tempo específico. Meses antes, vira a queda do Muro de Berlim e a ruína do socialismo soviético, e mergulhou sua obra nesse fim das esperanças da esquerda.

Mas buscou sua metáfora um tanto antes, por volta de 1300 a.C., na história do faraó Tutankáton. É uma figura que permeou o imaginário ocidental, já que a descoberta de seu sarcófago, quase intacto e cheio de relíquias, ajudou a entender costumes egípcios.

Menos conhecido, talvez, seja o fato de o faraó ter estado no centro de uma revolução, que marcou o Egito antigo e que é mote para a peça.

Akenáton, pai de Tutankáton, promoveu uma profunda reforma durante seu governo, instaurando o monoteísmo numa sociedade historicamente politeísta. A revolução, primeira experiência de um deus único de que se tem conhecimento, não era só religiosa, e trouxe mudanças para as artes e os costumes.

Quando assume o trono, o jovem herdeiro está mergulhado num ambiente revolto e na iminência de uma guerra. Para conter a população, acaba restaurando o politeísmo e mudando seu nome de Tutankáton (que significa “imagem viva de Áton”, o deus monoteísta) para Tutankâmon (“imagem viva de Amon”, o principal deus das antigas crenças).

“É uma peça que não envelhece, porque fala sobretudo de como as revoluções apenas arranham a superfície da história. O que muda o mundo são os costumes, as relações, as mudanças internas. E o texto faz muito sentido hoje. É uma coisa antiga que sempre volta, e volta agora: essa incapacidade de conviver com as pessoas de fato e essa tentativa de impor um pensamento único”, diz Lins. 

Ela escalou para o trabalho um elenco quase todo negro, do protagonista, Samuel de Assis, ao veterano Augusto Pompeo, que vive um juiz. 

Há vários anos a diretora acalentava uma montagem do texto e vinha conversando com Otavio sobre o projeto. Com a morte do jornalista em agosto do ano passado, aos 61 anos, o trabalho virou também uma homenagem. “Não teria como não ser. 

Faz um ano que ele morreu, e ele faz muita falta, para a gente e para o país”, afirma Lins.

O tributo se segue com a reedição do texto pela editora Cobogó —antes, ele havia saído pela Iluminuras, em 1991, e num volume da Cosac Naify, “Cinco Peças e uma Farsa”, de 2013. A nova publicação, que deve ser lançada no próximo mês, conta também com “O Terceiro Sinal”, ensaio de Otavio sobre sua participação, como ator, na montagem do Teatro Oficina para “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues. E com textos complementares de Marcelo Coelho, colunista da Folha, e da editora Fernanda Diamant, viúva de Otavio e com quem ele teve duas filhas, Miranda e Emília.

Lins assume agora uma tarefa virtualmente impossível, como o próprio autor definia. De fato, é a primeira a montar o texto. Até hoje, a peça teve apenas uma leitura dramática aberta ao público, em 1991, com direção de Gabriel Villela e elenco formado por nomes como Bete Coelho, Marisa Orth e Mariana Muniz.

A impossibilidade vem, por um lado, da forma do texto. “Esta peça provavelmente terá produzido no leitor uma pesada sensação de incômodo, quando não de pura hostilidade”, alerta Otavio no início das notas sobre “Tutankáton”. 

Afinal, a revolução de que o autor trata não é só religiosa e social, mas estilística. O jornalista fazia crítica ao que chamou de “ditadura do espírito modernista”. Para ele, naquela virada dos anos 1980 para os 1990, as artes ficaram presas a uma estética predeterminada, como se a vanguarda fosse o único estilo possível.

O que Otavio escreveu foi um texto clássico, que causa certo estranhamento no leitor moderno. Há até algo de shakespeariano. Tutankáton, jovem perdido em meio a confabulações e devaneios, tem um quê de Hamlet. Sua mulher, Ankesen (Monalisa Silva), lembra a ardilosa Lady Macbeth.

“Ele busca justamente o que o modernismo originalmente queria, a pluralidade das formas, então por que não um texto à moda clássica?”, pergunta a diretora. Mesmo para a encenação, Otavio indicava, em suas notas, um comedimento: “Se levada ao palco, a peça deveria receber um tratamento sóbrio, quase rústico. Pede-se que os atores movam-se o menos possível e que procurem declamar as falas em vez de interpretá-las”.

Lins não envereda pela declamação, mas segue a sobriedade até nas interpretações, que fogem do tom dramático. Em meio às caixas que preenchem o espaço, os atores surgem por vezes estáticos, como se fizessem parte daquele museu parado no tempo. 

Para o cenário, conta a diretora, buscou-se inventar um Egito, já que são muitos os clichês sobre o tema.

Em pesquisas sobre o faraó e exposições a respeito, chegaram a imagens do Louvre em plena Segunda Guerra. “Eles embalaram todas as obras de arte para protegê-las, e achamos que isso casava muito bem com a peça. Por aqui também tem uma guerra rolando e tem essa questão [cíclica] do tempo.”

A ideia de ciclo, diz a atriz Bete Coelho, está expressa em sua personagem, a vidente que vaticina os males daquele povo e sua incapacidade de evitar repetir os erros do passado.

A vidente e sua visão dura do destino é um pouco o pensamento do próprio autor —que, por sinal, gostava de interpretar o papel em leituras informais feitas em casas de amigos. “Ele bota nela essa camada espiritual, existencialista”, diz Coelho. 

“É muito seca, mas ao mesmo tempo muito poética.”
 

Tutankáton

  • Quando De 9/8 a 1º/9. Qui. a sáb., às 21h, dom., às 18h. Sessão extra em 28/8 (qua.), às 21h
  • Onde Sesc Avenida Paulista, av. Paulista, 119
  • Preço R$ 12 a R$ 40
  • Classificação 14 anos
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