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Dodô Azevedo

Por que o nosso povo não pega em armas como em 'Bacurau'?

Por que não incendiamos os jardins de quem promove os incêndios na Amazônia?

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Numa cena de “Bacurau”, a personagem de Karine Telles é informada por seus empregadores americanos que não é branca. Depois do susto, ouve os gringos rirem da presunção da personagem. Explicam que ela é latina.

A cena muito lembra o comportamento de brasileiros que só quando vão ao exterior descobrem que são o que mais temiam ser —brasileiros. Eduardo Bolsonaro, Olavo de Carvalho e o chanceler Ernesto Araújo, por exemplo, mal imaginam que, aos olhos de Trump, são tão latinos quanto mexicanos que pulam muros para entrar no país.

Pinóquios com a esperança de um dia serem considerados brancos de verdade, nossos “cucarachas” ignoram e consequentemente se tornam coniventes com o sistemático genocídio de jovens negros no Brasil, um dos temas implícitos em “Bacurau”.

Sou negro. Três de meus primos, também negros, foram assassinados antes dos 30 anos. Um foi morto pela polícia. Os outros dois se tornaram policiais e foram mortos por milicianos. Nossa avó, Rosália, de 89 anos, mistura de índia e negra baiana, viveu seus últimos dias em tristeza severina. A única coisa que ainda lhe trazia prazer era ver filmes de Charles Bronson na TV. 

Ela dizia, extasiada, toda vez que assistia a “Era Uma Vez no Oeste”, de Sergio Leone: “Sou louca por esse índio!” E vibrava com a apaixonada vingança a bala que Bronson protagoniza ali ao som de Ennio Morricone. “Vingança de caboclo”, ela sorria. Se viva, iria vibrar com “Bacurau”.

Noutra cena do filme, a personagem de Sonia Braga dá um alerta sobre o remédio que o prefeito rico de pele clara tem fornecido de graça para o povo do vilarejo nordestino. É um tranquilizante tarja preta, “que deixa qualquer um leso”, muito popular “desde que começou a ser fornecido também em formato supositório”.

É a resposta para as perguntas que ficam após a sessão de “Bacurau”. Por que, afinal, nosso povo de pele escura não pega em armas e se defende do secular genocídio que passa nas mãos de latinos de pele clara que gostariam de ser brancos? Por que não nos reagimos como Bronson em filme de Sergio Leone? 

Por que não nos comportamos como os moradores de Bacurau? Por que se escolhe um ônibus lotado de trabalhadores para atear fogo? Por que não incendiamos os jardins de quem promove e ridiculariza os incêndios na Amazônia? Por que presos em situação desumana resolvem, ao se rebelar, cortar cabeças dos que passam pela mesma situação? Por que, nos morros cariocas, quando se pega em armas, é para acertar outros pobres? Por que não se consegue enxergar o verdadeiro algoz?

É que, no poder, os que muito têm fazem os que pouco possuem enfiar no próprio ânus algo anestesiante. Algo que desfoca a vista, que inverte a percepção. Aos que pouco possuem, é cobrado aceitar violações, ainda que não consensuais. A lógica do mercado é a lógica do abuso, que, no fundo, é sexual. 

Bastante conhecida no cerrado brasileiro, a ave bacurau é um pássaro brabo que enxerga no escuro.

Nós, ainda não.

Dodô Azevedo é jornalista, escritor e cineasta

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