Artistas se unem a filha de Mãe Menininha em álbum contra a intolerância

Obra traz cantos poéticos aos orixás com a participação de Gilberto Gil, Gal Costa, Daniela Mercury, Ivete Sangalo e outros

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Salvador

​No barracão do Terreiro do Gantois, em Salvador, estrelas da música e filhos de santo entoam em iorubá um canto para o orixá Oxaguian puxado pela cantora Ivete Sangalo. Sob um teto de fitas brancas, Gilberto Gil faz a saudação de Xangô e Daniela Mercury canta para Nla. 

As luzes do Gantois se acendem por motivos lúdicos, na noite de 4 de setembro, durante o lançamento do álbum “Obatalá: Uma homenagem à Mãe Carmen” (Deckdisc e Gege).

Idealizado pelo Grupo Ofá —formado por Iuri Passos, Yomar Asogbá, José Maurício Bittencourt e Luciana Baraúna— e com direção geral da produtora Flora Gil, o disco celebra a ialorixá do Gantois, casa de origem iorubana fundada em 1849.

Obatalá é o orixá da criação, o senhor do branco, aquele que recebeu a incumbência de dar o sopro da vida. Mãe Carmen, 90, filha de Mãe Menininha, comanda o terreiro desde 2002, dentro da sucessão hereditária.

O disco traz 14 orikis, textos poéticos em reverência aos orixás, e mais três canções que exaltam a mãe de santo num momento de crescente intolerância religiosa.

Sentada em seu trono, a ialorixá prefere não comentar a agressividade de igrejas neopentecostais contra as religiões de matriz africana.A intolerância é deles. Aqui a festa é nossa. É um momento feliz. Não quero pensar neles. Eles que estão infelizes. Estamos ótimos. Enquanto um deles não vier aqui, não tem problema. Quem sofre são eles”, afirma Mãe Carmen.

“Salve Orí (Abaniwaye), o destino/ que nos acompanha ao mundo”, canta a mãe de santo no álbum. No encarte, todos os orikis em iorubá ganham versões em português.

Além de Daniela, Gil, Ivete e Ofá, uma frente ampla de artistas se integrou ao disco de 17 faixas. Alcione, Carlinhos Brown, Gal Costa, Jorge Ben Jor, Lazzo Matumbi, Márcia Short, Margareth Menezes, Marisa Monte, Mateus Aleluia, Nelson Rufino e Zeca Pagodinho. 

“Obatalá” é um novo capítulo da trajetória pop do Gantois. A amizade do poeta Vinicius de Moraes com Mãe Menininha ajudou a aproximar o terreiro de artistas e escritores, papel dividido com o romancista Jorge Amado.

Antes disso, em 1966, Vinicius e Baden Powell gravaram o álbum "Os Afro-sambas", marco da assimilação da mitologia dos orixás e da musicalidade dos terreiros pela canção popular.

 

Levada por Vinicius à roça do Gantois, em 1973, a cantora Maria Bethânia —uma ausência no disco recém-lançado— atrairia por sua vez Gal Costa e Caetano Veloso. Fã de Chacrinha e de telenovelas, Menininha liderou com alma pop e até gravou um LP pela Continental, em 1974. O louvor clássico à ialorixá veio de Dorival Caymmi, autor da “Oração de Mãe Menininha”. 

 

Suas filhas e sucessoras, Cleusa e Carmen, não atingiram semelhante mística. Assim, o disco “Obatalá” ilumina o discreto matriarcado de Mãe Carmen.

“Ela me preparou para tomar conta do candomblé com dignidade”, diz a homenageada sobre Menininha. Depois da morte de Mãe Stella de Oxóssi, uma das grandes matriarcas da Bahia e do terreiro Opô Afonjá, no final de 2018, Carmen virou a sacerdotisa mais conhecida de Salvador.

A presença do Grupo Ofá, criado por filhos do Gantois, confere solidez ao projeto, livre de proselitismos e facilidades, a começar pelos cantos em iorubá e pelos arranjos para atabaques ritualísticos, como os hun e hunpí. “Obatalá” se equilibra bem na própria história das influências culturais do candomblé, ao reunir artistas iniciados no culto nagô e outros simpatizantes ou católicos. 

“Eu não venho muito aqui. Não sou da religião do candomblé, embora tenha total sintonia e simpatia porque a minha música vem dessa cultura muito forte”, reconhece Ivete Sangalo, depois de pedir a benção da ialorixá.

Iuri Passos, produtor musical ao lado de Alê Siqueira, se preocupou em traduzir esse universo para aqueles que desconhecem os mitos africanos.

Um canto para oxóssi, sempre repetido na saída do bloco carnavalesco Ilê Aiyê, foi gravado por Alcione: “Odékomorodé/ Odé arere”. Nem todos, porém, sabem seu significado: “Salve o Ode que ensina/ Seus filhos a caçar”.

Obá  de Xangô no Afonjá, mas próximo do Gantois, Gilberto Gil gravou quatro faixas, dividindo um canto para Oxalá com Jorge Ben Jor —seu companheiro no disco “Ogum, Xangô”, de 1975—, para Oxum com Marisa Monte e para Mãe Carmen com Gal Costa. Sozinho, saudou seu Xangô: “Acudam todos, que o grande rei chegou!/ Chegou para melhorar o nosso mundo”.  

 

“Mãe Carmen fazia questão de enfatizar que esse disco deveria pertencer a uma linha de resistência, de protesto, de repúdio a toda essa violência que vem sendo exercida contra os candomblés”, diz Gil, em trajes brancos.

“Com a passagem do bastão do catolicismo para o protestantismo, essa violência contra o candomblé se acentuou, ganhou ares muito mais drásticos, mais dramáticos. Vem fazendo vítimas”, acrescenta o tropicalista. A “maré de ignorância, de intolerância” acompanha a ascensão da extrema direita no mundo.

A noite no Gantois, apesar de lúdica, terminou com um banquete similar ao das festas religiosas. Acarajé, abará, caldos baianos e, porque é pop, Coca-Cola.

O jornalista viajou à convite da produção do álbum

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