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Artes Cênicas

Música a serviço do drama evoca medo e tristeza em 'Prism'

Escrita coral é o destaque de ópera sobre abuso, composição da americana Ellen Reid que estreou no Municipal

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Prism

Em “Sonata de Outono” (1978), filme de Ingmar Bergman, os dilemas de uma relação problemática entre mãe e filha transitam por afetos díspares —amor, inveja, ódio, imaturidade, superproteção— sob o pano de fundo estrutural de uma forma musical, a “sonata clássica” do título.

“Prism”, ópera de 2018 composta por Ellen Reid com libreto de Roxie Perkins, em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, tematiza os descaminhos vividos por mãe e filha a partir de uma situação traumática de abuso sexual.

Conforme saberemos no segundo dos três atos, oito anos antes da história começar, Bibi, então uma criança de 12 anos, fora abusada por um desconhecido após ser deixada sozinha numa balada por Lumee, a jovem mãe que não queria abrir mão de viver intensa e perigosamente.

Lumee (interpretada pela mezzo soprano Rebecca Jo Loeb) e Bibi (a soprano Anna Schubert) são as únicas personagens concretas da história. As cantoras dominam plenamente seus papeis, têm franco envolvimento emocional com a história e superam os desafios propriamente teatrais.

Fisicamente paralisada, espacialmente confinada e mentalmente fadada a não recuperar a memória dos acontecimentos passados, Bibi luta contra o transtorno de estresse pós-traumático, enquanto numa superproteção doentia Lumee a mantém presa e amedrontada.

A escrita vocal das protagonistas não é particularmente memorável: é hesitante, tal como as oscilações e inseguranças que as impedem de abrir a porta de divisão entre o “santuário” —assim é denominado o quarto em que estão isoladas e infantilizadas— e o mundo.

Muito mais forte, musicalmente, é o uso dos naipes vocais invisíveis, a representação de fragmentos reprimidos das memórias da menina. Interpretado com categoria pelo Coral Paulistano, o coro —ao qual Reid devota uma escrita bastante detalhada— parece carregar, de fato, toda a força musical da narrativa.

Composta por um grupo de 14 músicos da Sinfônica Municipal, a parte instrumental é, por outro lado, bastante heterogênea. Realizada com abertura para diferentes estilos e efeitos, está predominantemente a serviço do texto e do drama. O grupo foi regido com cuidado e atenção por Roberto Minczuk, o titular da casa.

Em alguns momentos —como na tardia recuperação por Bibi das memórias da noite do abuso na casa noturna— a música se torna uma trilha diegética, isto é, uma representação bastante concreta do som que os personagens podem ouvir em cena.

É louvável que o Theatro Municipal insira uma obra nova como “Prism” em sua programação, e é importante também que tenha trazido a equipe original, incluindo técnicos de som. O som amplificado das vozes e instrumentos, assim como os efeitos eletrônicos estavam, na estreia (4/9), perfeitamente claros e equilibrados, o que não é nada comum em nossos teatros de música clássica.

Ao final, Bibi faz o que deve e pode fazer, mas jamais terá a vida que teria o direito de ter tido. A ópera de Reid e Perkins não é sobre indignação, mas sobre medo e tristeza.

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