Fábio Lafa passou a juventude escutando música de artistas negros. Primeiro, rap e pagode. “Como moleque preto, morador de bairro periférico, era o que se ouvia no rádio.” Aos 15 anos, foi apresentado ao R&B e ao soul por um tio, que o fazia ouvir discos dos anos 1970 e falava sobre a história dos gêneros.
Foram as sessões na casa do parente que despertaram sua vontade de conhecer mais sobre música. Além de passar tardes inteiras em lojas de discos, escutando CDs e lendo fichas técnicas, acompanhava críticas em jornais, revistas e programas de rádio.
Fascinado pelo assunto, Lafa tinha vontade de ser DJ e escrever sobre música, mas não se via discutindo o tema na mídia. “Sabia que não eram caras negros que estavam falando nos rádios, nos jornais. Quando jovem, não tinha nem conhecimento de que existia jornalista preto.”
Como disseram a ele que música não dava dinheiro, optou na faculdade por um curso de administração. Só mais tarde, já estabelecido financeiramente, procurou atuar na área de sua preferência.
Assim como Lafa, poucos jovens de grupos sub-representados sentem que podem escrever sobre arte na imprensa, explica a jornalista e crítica musical Elizabeth Méndez, de origem colombiana. Ela é fundadora do Critical Minded, instituição americana que investe em pessoas não brancas que buscam atuar na área.
De acordo com Méndez, a inclusão ainda é difícil porque a maior parte dos veículos tradicionais está fechada à pluralidade. Outro problema é a baixa remuneração. “Se você vem de uma família com dificuldades financeiras, a chance de optar por uma carreira como crítico é pequena”, afirma.
Em 2018, uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia analisou 20 mil críticas de cinema. Quase dois terços foram escritos por homens brancos. Mulheres representaram 22%, enquanto pessoas de etnias não brancas (homens e mulheres), só 18%.
Pensando em aumentar a pluralidade em seu site, o Rotten Tomatoes, agregador de críticas de filmes e séries, lançou um projeto para dar mais diversidade à sua lista de críticos. De 2018 para 2019, adicionou 600 novos perfis ao seu rol —sendo 55% mulheres.
“Queremos que os críticos sejam um reflexo do nosso público global da forma mais próxima possível”, explica a gerente sênior do site, Jenny Jediny.
No caso brasileiro, a falta de diversidade reflete a estrutura social do país e das próprias redações, segundo a jornalista Lulie Macedo, ex-editora e colaboradora da Folha. Apesar disso, para ela, hoje há um movimento pela inclusão de temas antes considerados pouco interessantes.
“Há dez ou 15 anos, emplacar uma pauta sobre hip-hop era difícil porque se acreditava que o leitor não ouvia esse tipo de coisa. O pensamento dos jornalistas acaba ficando distorcido porque estamos muito presos em nossa bolhas.”
Na Associação Paulista de Críticos de Artes, a APCA, apenas 21 dos 71 membros são mulheres. Um é negro. Apesar de contar com mais mulheres do que homens —elas são 69 de um total de 111 associados— , a Associação Brasileira de Críticos de Artes (ABCA), de artes visuais, também integra poucos negros, como revela uma análise de seu catálogo de associados.
O antropólogo e curador de arte independente Hélio Menezes destaca o maior número de exposições de artistas negros brasileiros nas últimas décadas, mas lembra que uma crítica diversa e com mais interesse na arte negra é essencial para que o avanço continue.
“Quem não é criticado não circula, quem não circula não aparece, quem não aparece não faz exposição. É um círculo vicioso.”
Foi em um cineclube na faculdade que Kênia Freitas, 34, nascida no Espírito Santo, passou a ter um olhar mais crítico sobre cinema. Por ser mulher e negra, porém, não se imaginava escrevendo críticas de maneira profissional.
“A grande maioria das críticas que lia eram feitas por homens. Pelos textos, dava pra saber que eram brancos, do eixo Rio-São Paulo. Não sentia que eu pertencia àquele mundo”, diz Freitas, que hoje desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado sobre cinema e afrofuturismo na Unesp, escreve críticas para o site Multiplot! e integra o coletivo Elviras.
Formado somente por mulheres, o coletivo nasceu em uma reunião de críticas de cinema durante o Festival de Brasília de 2016, com o intuito de destacar o trabalho das profissionais da área.
“Acreditava-se que existiam poucas mulheres interessadas em trabalhar com crítica. Na verdade, são muitas. Como não há espaço na mídia tradicional, a maioria acaba escrevendo em blogs e sites”,
afirma Cecília Barroso, uma das fundadoras do Elviras.
Entre as preocupações do grupo, de 109 integrantes, está incluir mais mulheres de etnias diversificadas e transexuais. Outra é achar o caminho para as grandes publicações.
Uma integrante do grupo, Ivonete Pinto, assumiu recentemente a presidência da Abraccine, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, que tem mais de quatro homens para cada mulher entre seus membros.
Segundo Ivonete, professora de cinema na Universidade Federal de Pelotas, a inclusão será uma das prioridades da nova gestão. Para além da discussão de gênero, no entanto, promover diversidade racial ainda é uma tarefa complexa.
“Na ficha de inscrição, não pedimos detalhamento de raça”, diz Ivonete. “O principal critério continua sendo a qualidade do texto, então queremos criar ações como oficinas de escrita e de capacitação voltadas para minorias.”
Fábio Lafa, hoje com 38 anos, tornou-se DJ, curador musical e escreve sobre música negra para o blog Frequência Modulada. “Quem lê meus textos e vê minha foto toma um susto. Não imaginam que seja um negro escrevendo.”
“Os holofotes da mídia precisam se voltar para as comunidades às quais a arte fala. Se a música trata de periferia, tem que ter gente periférica falando sobre ela. A indústria abriu espaço para os artistas negros, agora as narrativas sobre sua arte devem ser contadas por pessoas com vivências próximas das deles.”
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