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Desejo, masturbação e violência se misturam no terror 'O Farol'

Segundo filme de Robert Eggers traz referências que vão de expressionismo alemão a Stanley Kubrick

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São Paulo

Um fálico farol numa ilhota deserta, gaivotas saídas de “Os Pássaros”, o machado de “O Iluminado”, evocação de mitos gregos, uma sereia, dois sujeitos obscuros disputando um torneio insano de masculinidade tóxica.

Parece matéria-prima de um pesadelo simbolista, mas é o resumo da paleta de elementos reunidos pelo jovem cineasta americano Robert Eggers em seu segundo filme, “O Farol”, que será exibido na 43ª Mostra de Cinema de São Paulo nesta terça (29).

A ambiguidade entre sonho e realidade, que já marcara seu premiado longa de estreia —o horror vencedor do Festival de Sundance “A Bruxa” (2015)—, ganha contornos maníacos no relato que opõe Tom Wake (Willem Dafoe) e Ephraim Winslow (Robert Pattinson).

“Ao final, eu não quero ficar explicando nada. Prefiro que tudo fique aberto ao espectador”, disse Eggers, 36, em uma conversa por telefone. Ele virá ao Brasil pela primeira vez para dar uma palestra após a exibição do longa, às 19h30, no auditório do Ibirapuera.

O registro onírico marca todo o filme, fotografado num preto e branco enevoado e, assim como “A Bruxa”, com produção de Rodrigo Teixeira. Ele relata a convivência de dois dois zeladores de farol, Wake, o chefe, e Winslow, o subalterno, por quatro semanas numa ilhota na costa do Maine (EUA) na década de 1880.

A confrontação é pontuada por intervenções sobrenaturais crescentes, como o segredo da lâmpada do farol ou a presença altamente sexual de uma sereia voluptuosa. Ou será tudo delírio, dado que os homens apelam para uma mistura de querosene e mel para se embebedar?

Tal tática já havia funcionado em sua estreia, um conto sobre bruxaria na Nova Inglaterra do século 17 com tons abertamente feministas.

Como um ilusionista, Eggers apresenta um caminho que pode ou não pode ser o que as imagens sugerem. “É muito mais satisfatório assim”, diz, reconhecendo o risco: quantos longas não irritaram com revelações do tipo “era tudo um sonho” ao final?

Mas aqui não há truques vulgares, e sim uma claustrofóbica descida ao inferno. “É o que acontece quando você coloca dois caras dentro de um grande falo, não?”, afirmou, rindo.

De fato, uma forma de ver “O Farol” é como um estudo sobre masculinidade. Há de tudo: desejo reprimido, masturbação, homoeroticismo, segredos e muita violência.

Como o roteiro de Eggers e seu irmão Max transforma o relacionamento dos dois em disputa homicida, uma das leituras possíveis do filme é ver na crítica a esse mundo falocêntrico a continuidade do feminismo de “A Bruxa”.

Eggers concorda, rejeitando reducionismos. “É um estudo sobre o ciúme, entre outras coisas. Gosto de linguagem simbólica e mitos”, diz.

Isso fica claro no modo com que Winslow encarna Prometeu, o titã da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens. Sua punição foi, acorrentado, ter o fígado comido por uma águia só para o órgão se regenerar, eternizando a tortura.

Wake, por sua vez, emula numa dada cena Proteu, filho de Poseidon que pontifica o cancioneiro marítimo clássico. Há ecos da “Balada do Velho Marinheiro” (1834), do britânico Samuel Taylor Coleridge, e de “Moby Dick” (1851), do americano Herman Melville.

E há as gaivotas. Assim como os bodes de “A Bruxa”, os penosos são ameaça e mensageiros de presságios —não se via algo assim desde “Os Pássaros” (Alfred Hitchcock, 1963).

Fã de “O Iluminado” (Stanley Kubrick, 1980), Eggers presta sua homenagem ao mestre em cenas pivotais envolvendo um machado.

Como tirar uma narrativa fresca de um caldeirão de referências como esse, a maioria delas distante do frequentador médio de cinemas? “Eu admito que talvez tenha colocado muita coisa [no roteiro]. No fim, ficou exagerado.”

“Minhas referências vêm da alta cultura. Acho que não teremos o mesmo público de um filme de herói da Marvel, mas acho também que um longa em preto e branco pode ser chamativo”, diz o diretor.
Em tempo, ele tende a apoiar Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, que criaram polêmica ao dizer que os longas da Marvel não são cinema.

“Acho que dizer isso é usualmente verdade, mas não sempre. Há ótimos diretores na área”, diz, citando Tim Burton (“Batman” de 1989), Sam Raimi (a primeira trilogia do “Homem-Aranha”) e Christopher Nolan (a trilogia mais recente sobre Batman).

Os filmes de Eggers usam relatos reais como diálogo, em inglês correspondente, e tiveram casas e roupas feitas com materiais originais —o farol atual foi erguido do nada. Não seria contraditório que tal apego ao realismo sirva a tramas alegóricas? “É intencional. Faço uma pesquisa obsessiva e isso garante uma atmosfera rica, onde você não precisa inventar nada além do rumo da história”, diz.

Em “O Farol”, há um estranho senso de humor escatológico. A flatulência de Wake serve de alívio cômico deslocado, mas no geral o espectador é chocado com um cenário em que fezes, urina, sêmen e sangue são todos elementos contagiantes, imundos.

Eggers prepara seu terceiro filme de época, “The Northman”, sobre um príncipe nórdico que vinga a morte do pai no século 10. “Meu playground imaginário é o passado. Seria arqueólogo se pudesse, acho que é explorando o passado que explico o presente.”

Assim, ele descarta fazer filmes com roteiros contemporâneos. Sobre o próximo, ele diz que “estamos fazendo um trabalho de pesquisa enorme sobre história viking”, mas que “não gosta de tanta liberdade” por ter pouca informação verificável sobre a vida há mais de mil anos.

Eggers soa desassombrado ao dizer que foi natural trabalhar com o consagrado Dafoe e Pattinson, que deixou no passado o vampirozinho emo de “Crepúsculo”. “Fizemos tudo juntos.” Está funcionando. Seus dois filmes são sucesso de crítica.

 

O FAROL

  • Quando Terça (29), às 19h30 (auditório Ibirapuera), às 21h30 (Espaço Itaú Augusta)
  • Onde Auditório Ibirapuera (Av. Pedro Álvares Cabral, Vila Mariana) e Espaço Itaú Augusta (R. Augusta, 1475, Cerqueira César)
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Willem Dafoe e Robert Pattinson
  • Direção Robert Eggers
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