Cildo Meireles esconde colagem entre texto e gráfico de jornal

Primeira inserção do artista na imprensa em 49 anos remete a prática de artistas na ditadura

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São Paulo

Uma estranha imagem surgiu em meio a um texto de Mercado, na edição impressa da Folha, no domingo (10).

Um díptico em que, de um lado, uma esfera negra contrasta com um fundo claro, e de outro, um homem esquelético se curva num canto confundiu os leitores de uma reportagem sobre a guinada do Magazine Luiza em direção ao comércio eletrônico.

Intervenção de Cildo Meireles no caderno Mercado da Folha de S.Paulo em 10.nov.2019
Intervenção de Cildo Meireles no caderno Mercado da Folha de S.Paulo em 10.nov.2019 - Reprodução

Sem assinatura, o trabalho é de autoria de um dos maiores artistas brasileiros, Cildo Meireles, e faz parte da série "Eureka/Blindhotland", exibida na retrospectiva do carioca no Sesc Pompeia —a mesma imagem aparece no verbete da obra no catálogo da exposição.

Segundo a organização, outras quatro intervenções semelhantes devem ser publicadas em jornais paulistanos de grande circulação até o término da mostra, em fevereiro do ano que vem.

Esta não foi, porém, a primeira vez que Cildo usou um jornal como suporte para as suas criações.

Autora do livro "Arte-veículo", sobre intervenções artísticas nas mídias de massa brasileiras, Ana Maria Maia conta que o carioca publicou duas intervenções nos classificados do Jornal no Brasil em 1970.

Na primeira, de janeiro daquele ano, assina como "Gildo Meireles" por erro da datilografia. O retângulo em que anuncia a sua "Área nº 1", maior do que aqueles que o circundam, foi apelidado de "Clareira".

Depois, em junho, Cildo continua com seu projeto de corretor imobiliário às avessas ao publicar um reclame em que se lia "Áreas. Extensas. Selvagens. Longínquas", seguido de um endereço no bairro carioca de Laranjeiras.

Apesar de ter sido um dos pioneiros da prática, Cildo não está sozinho. Seu antecessor mais emblemático foi provavelmente o polêmico Flávio de Carvalho, que em 1958 convidou jovens loiras esbeltas a participarem de um teste para um filme das 18h30 às 20h, mas com margem para "experimentar, também, em outros horários", narra Maia no livro.

Seguiram-se a ele Antonio Manuel, Rubens Gerchman, Marcello Nitsche e Luiz Paulo Baravelli, para citar alguns dos que descobriram nos jornais um jeito de driblar o cerceamento à liberdade de expressão na ditadura.

Dois dos artistas mais profícuos daquele período foram os pernambucanos Paulo Bruscky e Daniel Santiago.

Suas "poesia-classificadas" escondiam invenções líricas entre anúncios de compra e venda, como uma composição de nuvens coloridas no céu do Recife, uma máquina de filmar sonhos e um vinil que desaparece à medida em que é tocado, as duas últimas assinadas apenas por Bruscky. Outro anúncio da dupla, mais crítico ("A gente vive sorrindo, mas paga caro"), foi censurado pelo Diário de Pernambuco em 1977.

Isso não os impediu de continuar a produzir. Em 2015, por exemplo, Bruscky escondeu um poema dedicado a São Paulo nos classificados desta Folha.

Voltando a Cildo, fica a dúvida de por que ele decidiu retornar à prática quase 50 anos depois de suas intervenções originais. Ainda mais considerando-se que, numa entrevista de 2006 a Thais Rivitti, autora de uma tese sobre a ideia de circulação na obra do artista, ele afirmou que desistiu dos jornais por serem uma tática ineficaz naquele contexto de ditadura.

Ao contrário das cédulas de dinheiro e garrafas de Coca-Cola que ele usou em suas célebres "Inserções em Circuitos Ideológicos", eles eram facilmente recolhidos das bancas.

Se artista e os curadores da mostra no Sesc Pompeia preferiram não comentar a obra de agora para não estragar o mistério, Maia tem uma teoria.

Lembrando que a fotografia do homem encurvado, um interno num hospital psiquiátrico, também aparece nas notas falsas de "Zero Cruzeiro" de Cildo, ela diz que a intervenção reflete sobre um Brasil cuja história se repete.

Obra de Cildo Meireles que integra a mostra 'Entrevendo' no Sesc Consolação
Obra de Cildo Meireles que integra a mostra 'Entrevendo' no Sesc Consolação - Pat Kilgore/Divulgação

Mas, ao contrário de outras obras que o artista revisitou —caso das "Inserções" —, esta é um "teste cifrado, um enigma".

Rivitti também enxerga ecos do passado nesta nova inserção em jornal, a primeira puramente gráfica. "O classificado era uma estratégia de camuflagem numa época de censura. Reabilitá-la tem a ver com os tempos atuais", diz.

Ela traça um paralelo entre a nova obra e o conto "O Alienista", de Machado de Assis. Lembrando que a série à qual a colagem pertence usa esferas idênticas na aparência e diferentes no peso, ela afirma que colagem questiona: "quem é o louco e quem é o são aqui?".

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