Cildo Meireles se diz com sangue nos olhos décadas após última mostra de peso

Em exposição no Sesc Pompeia, artista fala de violência e pergunta quem matou Marielle

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Obra de Cildo Meireles presente na exposição 'Entrevendo' no Sesc Pompeia

Obra de Cildo Meireles presente na exposição 'Entrevendo' no Sesc Pompeia Pat Kilgore/Divulgação

São Paulo

“Quem matou Herzog?” A pergunta se repete nas cédulas de um cruzeiro que Cildo Meireles carimbou nos anos 1970, em referência ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog durante um interrogatório no DOI-Codi, forjado para parecer suicídio pelos oficiais do regime militar.

Com o passar dos anos, o cruzeiro virou cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real, real. Mas as notas de Cildo nunca se calaram.

No início dos anos 2000, indagaram por que Toninho do PT e Celso Daniel foram assassinados. Em 2013, o que aconteceu com o pedreiro Amarildo, torturado e morto por policiais na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.

Em "Entrevendo", mostra que o artista abre agora no Sesc Pompeia, notas de R$ 2 e R$ 5 estampam o rosto de Marielle Franco, a vereadora do PSOL assassinada no ano passado —um caso de polícia que continua em aberto.

Questionado sobre como se sente em relação à atualidade das suas “Inserções em Circuitos Ideológicos” cinco décadas depois, Cildo é direto. “Com sangue nos olhos”, responde.

“Esse trabalho só existe no gerúndio, enquanto está circulando. Me interessava criar um mecanismo de expressão praticável por qualquer indivíduo, já que naquele momento havia a questão da censura”, explica.

Não que, para o artista, esta tenha acabado com o fim do período militar. “Hoje, ela parece existir muito mais. Fruto da ignorância, né?”

Um dos artistas mais celebrados de sua geração, com mostras individuais no MoMA, em Nova York, e no Reina Sofía, em Madri, além de sucessivas participações na Bienal de Veneza, Cildo não levanta a voz para falar de política.

Discreto, de boina na cabeça, disseca o contexto atual como um momento da “babaquice institucionalizada”, do “império da mediocridade”. Mas diz confiar nas instituições democráticas 
para atravessar essa época.

“Tem um verbo que meu pai, que era pernambucano, sempre repetia. É uma questão de ‘desasnar’ as pessoas. É um trabalho contínuo, mas lento.”

O artista não apresentava uma exposição das dimensões desta em São Paulo desde 2000, quando ganhou uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna carioca. Aos 71 anos, 54 deles de carreira, diz estar cansado das “maratonas” das montagens, mesmo que continue produzindo.

“Eu e Tunga costumávamos brincar que, a cada mostra, era uma a menos. Espero que seja uma das últimas.”

A vontade de reapresentar sua trajetória sob uma nova perspectiva partiu, desse modo, não do artista, mas do Sesc, que confiou a empreitada a Júlia Rebouças e Diego Matos.

A dupla pinçou então cerca de 150 trabalhos de Cildo concentrados em experimentações com os cinco sentidos —um jogo no qual, adiantam, a visão costuma perder.

Uma de suas preocupações foi trazer obras pouco vistas no país. Daí a ausência de alguns dos trabalhos mais conhecidos de Cildo, como “Desvio para o Vermelho”, sala em que todos os móveis são tingidos da cor, e “Através”, labirinto em que os visitantes caminham sobre estilhaços de vidro, ambos do Instituto Inhotim, em Brumadinho, cidade mineira devastada pelo estouro de uma barragem.

Além disso, para dialogar com o espaço —que não é um museu tradicional— escolheram uma série de obras que convidam o público à interação.

No trabalho que dá nome à mostra, por exemplo, espectadores adentram um túnel de ar quente com dois pedaços de gelo na boca, um doce e um salgado. Noutro, bolas de borracha que parecem idênticas revelam variações sensíveis de peso aos que se dispõem a brincar com elas.

Caminhando pela mostra, um dos curadores, Matos, aponta para uma obra formada por duas barras de ferro, uma curva e outra reta, chamada de “Para Ser Curvada com os Olhos”. “Cildo brinca que todas as suas exposições deveriam começar com essa obra, como um prólogo”, diz.

De fato, muitas das peças propõem esse mesmo chamado à imaginação, trabalhos que ora desconstroem os usos de objetos cotidianos, como escadas e fitas métricas, ora propõe intervenções na natureza, como aquela que, ao aumentar em um centímetro o pico da Neblina, no Amazonas, rompeu a “fronteira vertical” do país.

Não é à toa que a fotografia que abre a exposição retrata Cildo de ponta-cabeça, plantando bananeira sobre uma escultura do italiano Piero Manzoni.

Não que a verve política do criador das “Inserções”, um dos maiores símbolos da arte engajada dos anos de chumbo, fique esmaecida. Muitas das obras mais impactantes da mostra compartilham esse teor.

Duas delas, “Olvido” e “Missão, Missões (Como Construir Catedrais)”, formam uma espécie de díptico nesse sentido.

Na primeira, o barulho de uma motosserra ressoa do interior de uma tenda coberta por notas de todos os países da América. A cabana é rodeada por uma piscina de três toneladas de tíbias e fêmures de boi, que por sua vez é delimitada por um muro feito com 70 mil velas brancas.

Na outra, os mesmos ossos pendem do teto, se debruçando sobre uma piscina de moedas fora de circulação. Uma coluna de 800 hóstias empilhadas liga o chão ao teto, ou a terra ao céu.

Cildo Meireles posa com 'Missão/Missões', no Sesc Pompeia
Cildo Meireles posa com 'Missão/Missões', no Sesc Pompeia - Zanone Fraissat/Folhapress

As duas discutem a formação do continente americano —uma equação que envolveu riquezas, fé e o massacre dos povos indígenas e negros. O cheiro dos ossos se espalha pelo prédio desenhado por Lina Bo Bardi.

Uma anedota que Cildo contou na montagem pode ajudar a entender os dois aspectos centrais de sua obra, o lúdico e o político —que, como nas “Inserções”, não raro aparecem de mãos dadas.

Falando sobre o rótulo de “conceitual”, que por muito tempo abominou, Cildo afirma que só se reconciliou com ele quando um amigo comentava sua experiência na cadeia durante a ditadura.

“Ele disse que, quando entrava na cela um celofane vermelho de maço de cigarro, um palito de fósforo, ficava pensando no que eu e meus amigos faríamos com isso”, sorri.

Destaques da exposição

‘Inserções em Circuitos Ideológicos’ (1970-2019)
Ressignifica a ideia de ‘ready-made’ ao usar cédulas de dinheiro para circular mensagens críticas para além do ambiente de um museu

‘Zero Cruzeiro’ (1974-1978)
Cria notas falsas de ‘zero cruzeiro’ para representar dois grupos sem visibilidade, os indígenas e os loucos

’Amerikkka’ (1991-2013)
A obra faz referência ao Ku Klux Klan e é formada por um chão de ovos de madeira e um teto de balas

‘Missão, Missões’ (1987-2019)
A obra antes retangular ganha uma versão circular, usando ossos de boi, hóstias e moedas para refletir sobre a colonização

Raio-X

Cildo Meireles, 71
​Um dos mais importantes artistas nacionais vivos, o carioca já protagonizou exposições em museus como o MoMA, em Nova York, e o Reina Sofia, em Madri, além de ter participado quatro vezes da Bienal de Veneza. Foi o segundo brasileiro a ganhar uma retrospectiva na Tate Modern, em Londres, depois de Hélio Oiticica

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