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Coroação de Billie Eilish mostra como Grammy sofre para se reinventar

Cerimônia parece ter sido resultado dos esforços de renovação da presidente da Academia de Gravação, que foi afastada

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O que a boyband coreana BTS e o rapper americano Lil Nas X têm em comum? Musicalmente, quase nada. Ambos são, contudo, consumidos por jovens ativos na internet.

No palco do Grammy, no último fim de semana, em Los Angeles, eles se juntaram para uma performance meio esquisita do hit super-remixado "Old Town Road". A performance, pouco musical, existia para cumprir uma função —reunir o máximo de xodós dos memes na mesma imagem.

Três jovens asiáticos cantam ao lado de um homem negro com roupas prateadas no estilo caubói
O rapper americano Lil Nas X e a boy band coreana BTS se apresentam no 62º Grammy, em Los Angeles - Robyn Beck - 26.jan.2020/AFP

O último Grammy, que consagrou Billie Eilish, marca uma clara tentativa de mudança dentro da Academia de Gravação, a instituição que faz o prêmio. Após anos e anos de acusações de ser muito branca, masculina e velha, a resposta da premiação foi a coroação de uma garota de 18 anos nas categorias principais —primeira vez que uma mulher alcança o feito, inédito desde 1981—, de álbum, música e gravação do ano, além de artista revelação.

Seu álbum de estreia, "When We All Fall Asleep, Where Do We Go?", é o espelho de uma geração que nem sequer viveu os anos 1990, quando as inseguranças adolescentes —o medo de amar, a fragilidade em lidar com ansiedade e depressão— convivem com uma postura afirmativa debochada.

Eilish é uma estrela pop pós-Madonna, que usa roupas largas e tênis esportivos, é fã de hip-hop e põe trechos da série "The Office" nas músicas.

É até curioso que o Grammy que sagrou Billie Eilish seja justamente o que Taylor Swift, queridinha da premiação, tenha esnobado, mesmo concorrendo em algumas categorias.

Mas a avalanche Billie Eilish, ainda que tenha a ver com seus predicados, parece falar mais sobre a própria indústria. Finneas, irmão de 22 anos da cantora, ganhou o Grammy de produtor do ano pelo trabalho em "When We All Fall Asleep, Where Do We Go?", que também rendeu um prêmio de engenharia de som.

Ou seja, um disco inteiro composto e gravado no quarto da casa dos irmãos, sem a supervisão dos adultos, foi mais bem escrito, interpretado e produzido do que os trabalhos com compositores e produtores caros e renomados, nos equipados estúdios de Los Angeles.

Esse tipo de frescor, de um produto feito longe dos vícios e das planilhas das gravadoras, não é exclusivo de Eilish. Na verdade, é algo cada vez mais comum —dos fenômenos brasileiros de funk no YouTube ao rap de SoundCloud americano, cujos expoentes somam centenas de milhões de visualizações nessas plataformas.

Ao longo da última década, o Grammy parece ter evitado tudo isso. Em 2015, Beck —com um disco que poucas pessoas devem lembrar o nome hoje em dia— bateu um dos mais aclamados álbuns de Beyoncé.

Em 2016, a aventura pessoal de Taylor Swift de "1989" bateu "To Pimp a Butterfly", disco de Kendrick Lamar tido como clássico contemporâneo do rap pela crítica.

O Grammy, na verdade, perdeu o bonde da música pop. No auge do sucesso de Drake, com o hip-hop, o R&B e a música negra se tornando o gênero mais consumido nos Estados Unidos, a grande premiação da indústria fonográfica americana deu a apenas um artista negro —Bruno Mars, com seu funk retrô, em 2018— o prêmio de álbum do ano.

Tudo isso resultou num sonoro boicote em 2019. Childish Gambino, que ganhou quatro prêmios, não foi à cerimônia. Drake, que disse que não ia, mas apareceu de surpresa, discursava sobre a pouca importância de premiações como o Grammy quando teve seu microfone cortado. Até Ariana Grande cancelou sua performance e acusou censura.

Vencedor do prêmio de melhor álbum de rap, Tyler the Creator falou à imprensa sobre o racismo no Grammy. "É uma merda que toda vez que pessoas que se parecem comigo fazem algo que mistura gêneros, sempre nos põem em categorias de rap e urbana. Não gosto dessa palavra 'urbana'. Para mim, é um jeito politicamente correto de dizer a 'n-word'", falou, em referência à forma ofensiva de se referir a negros.

A cantora Lizzo, que chegou badalada, com oito indicações, ganhou categorias de R&B tradicional e música urbana.

Tudo isso levou à nomeação de Deborah Dugan ao comando da Academia. Ela chegou no ano passado, para rejuvenescer e evoluir questões de representatividade.

Dez dias antes do evento, ela foi removida do cargo, dizendo ter sido retaliada por revelar escândalos de abuso sexual, irregularidades na votação e conflitos de interesse.

Ao que parece, o Grammy de 2020 resulta dos esforços de Dugan. As grandes estrelas da premiação —Eilish, Lizzo e Lil Nas X—só fizeram sucesso no ano passado, e todos concorreram ao prêmio de revelação. Foi uma noite sem astros gigantes. Sem Foo Fighters, sem Adele, sem Taylor Swift.

A cerimônia, em Los Angeles, foi de muitas performances e poucos prêmios. Todo mundo, de Aerosmith a Demi Lovato passou pelo palco do Grammy, quase sempre com pianos e versões mais comportadas de seus hits. Ver Ariana Grande cantando seu trap-pop-festeiro com orquestra, ou Billie Eilish soltando a voz ao piano, pouco revela sobre as inovações estéticas desses artistas.

Ao fim das quase quatro horas, só nove prêmios foram anunciados —incluindo melhor álbum de comédia (!), dado pelo terceiro ano seguido a Dave Chappelle (!!), que nem sequer compareceu ao ginásio (!!!). As outras 75 categorias ficaram relegadas a uma tímida e protocolar pré-cerimônia.

Billie Eilish, com a vitória acachapante, virou símbolo do momento em que o Grammy decidiu correr atrás do prejuízo. Seu sucesso, agora chancelado por uma grande instituição da indústria fonográfica, vai fazer dela (ainda mais) modelo para executivos de gravadoras nos Estados Unidos e ao redor do mundo.

Não que fosse exatamente algo que ela quisesse. Aos 18 anos, segundos antes de receber o prêmio de álbum do ano, ela foi flagrada pelas câmeras com os olhos fechados pedindo "por favor, eu não". 

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