Descrição de chapéu Artes Cênicas

Espetáculo narra história de violência doméstica sofrida por Maria da Penha

Texto é última obra escrita por Consuelo de Castro, dramaturga ícone da geração dos anos 1980

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São Paulo

Um dos primeiros gestos de violência do antagonista de “Uma Lei Chamada Mulher” é um mero cala boca. Mero, obviamente, cai como palavra inadequada aqui. Na visão do personagem Marco, ele se vê no direito de tapar a boca de Penha para dizer: “Nunca mais fale a palavra ‘caridade’ na minha frente”.

A palavra caridade é um troço incômodo para este macho que, na peça, desenvolveu uma dependência afetiva. E o cala boca vai ganhando gravidade, até o ponto de se tornar tentativa de assassinato. A história é conhecida. 

Escrito por Consuelo de Castro pouco antes de sua morte, em 2016, esse drama de Penha e Marco tem base no conflito verídico entre a farmacêutica cearense Maria da Penha e seu marido, o economista colombiano Marco Antônio Heredia Viveros. 

 

A história de Maria da Penha e dos abusos que sofreu na mão do marido se tornou símbolo do movimento feminista brasileiro, a ponto de ter dado título a uma lei, a Lei Maria da Penha, sanciona em 2006 para combater a violência doméstica.

Ela foi escolhida para ser o último texto de Castro, obra inédita que ganha o palco pela primeira vez nesta sexta, no Sesc Ipiranga, com direção de Lenise Pinheiro, fotógrafa da Folha. Com a encenação, Lenise faz sua estreia como diretora, após uma longa carreira dedicada a atividades diversas da carpintaria cênica, entre produção, fotografia e iluminação.

Também foi narrada por Maria da Penha no livro “Sobrevivi: Posso Contar”, obra que atravessa, do início ao fim, a longa relação da vítima com o seu próprio agressor.  

Durante 23 anos, Maria da Penha foi submetida a uma relação abusiva dentro de casa. A evolução do caso poderia ter sido o feminicídio. Viveros tentou matar Maria da Penha primeiramente com um tiro e, mais tarde, por meio de eletrochoque, quando ela ia tomar banho. Penha sobreviveu aos dois atentados, mas ficou paraplégica no primeiro deles.

O espectador não deve chegar à peça, porém, esperando uma leitura maniqueísta do caso. Há inclusive momentos cômicos no relacionamento entre os pares. O casamento deles no Consulado da Bolívia (justificado por questões burocráticas) é regado pela rispidez irônica de ambas as partes. São, naquele trecho, um casal até que engraçado.

“Não é baixo astral”, diz Lenise, sobre o texto. “O que mais me move nessa peça é que aquilo pode acontecer com qualquer um de nós, héteros ou gays, onde houver relacionamento. A questão de abuso psicológico, ou de abuso físico, ou abuso econômico, isso tudo está ali, ligado a uma sociedade de valores muito questionáveis”, diz Lenise.

As duas cenas de tentativa de homicídio estão presentes. 

Lenise divide o conteúdo da peça em duas camadas: aquela que é desenvolvida em torno do amor dos personagens, e uma segunda, na qual Penha, unida a duas funcionárias que a auxiliam dentro de casa,
vira o jogo. “A força dessas três mulheres permitiu que elas criassem uma célula de resistência”, diz Lenise.

A diretora conta que manteve uma relação muito estreita com Castro, a autora do texto, atribuindo essa amizade a uma “herança de Otavio [Frias Filho]”, dramaturgo e diretor de Redação da Folha até sua morte, em agosto de 2018.

A peça chegou a ter uma leitura, em sessões que Lenise promovia às sextas-feiras. “Consuelo era muito divertida, muito dedo na ferida”, conta. Uma das últimas frases da peça é “Fala baixo senão eu grito”, uma brincadeira com  o título de uma obra de Leilah Assumpção, companheira de Castro no despontar dessas vozes femininas da dramaturgia brasileira dos anos 1970 e 1980. 

Após sua estreia na direção de uma peça, Lenise pretende tocar o projeto de um roteiro para o cinema baseado em livro de Priscila Gontijo, “Peixe Cego”, também centrado em uma personagem feminina, só que relacionada ao universo de Anton Tchékhov. 

A diretora sublinha uma recusa a demonizar a figura masculina. “Na peça, o homem é multifacetado”, afirma. “Olhei com bastante carinho para a figura masculina, e até há a questão de ele perder a virilidade.” 

Para a diretora e fotógrafa, “o fato de o homem ser agressivo e violento imprime uma imagem de que é impotente em vários sentidos”. “Não me desperta compaixão o homem violento, mas sim a sua condição. E não dá para passar a mão nem deixar de advertir que é errado. O homem só tem a ganhar sendo um parceiro da mulher”, encerra.

Uma Lei Chamada Mulher

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