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The New York Times

Restaurantes são barulhentos porque nós somos ruidosos, diz crítico gastronômico

Escritor defende o prazer em escutar os encontros que se dão em torno da comida e da bebida

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Pete Wells
The New York Times

Não importa o que mais digam os leitores em seus comentários sobre meus artigos, na mídia social ou nos emails que me enviam, duas reações ao que escrevo sobre restaurantes são as mais comuns. A primeira é a de rejeição à ideia toda de comer fora, porque afinal é sempre possível comer em casa gastando muito menos dinheiro. A isso, não há muito que eu possa responder a não ser “bon appétit”.

A segunda assume diversas formas, todas elas essencialmente queixas sobre o barulho. As pessoas dizem que foram ao restaurante que comentei naquela semana, e era barulhento demais. Ou a reação é a de que os restaurantes em geral são barulhentos demais. Ou a queixa assume um teor mais histórico, e considera o longo prazo: os restaurantes estão se tornando cada vez mais barulhentos.

restaurante
Montagem do musical 'Das Barbecü', paródia do Ciclo do Anel, de Wagner, em restaurante de carnes em Nova York, em janeiro - Jonno Rattman/The New York Times

Muitas vezes, os leitores que fazem comentários como esses me imploram para que eu faça alguma coisa a respeito. Minhas resenhas quase sempre incluem impressões sobre acústica de cada restaurante, mas muita gente sugere que eu faça como o crítico de gastronomia do Washington Post, Tom Sietsema, que inclui em suas resenhas o nível de ruído do restaurante em decibéis, acompanhado por uma breve explicação (“é preciso erguer a voz para conversar”).

Outros leitores gostariam que eu assumisse uma posição de forte oposição ao barulho. Recentemente, recebi um email de um médico que se define como ativista do ruído, no qual ele comparava o barulho dos restaurantes ao fumo passivo. Foi preciso uma lei para impedir os cigarros em restaurantes, ele escreveu, e se pessoas se conscientizarem do risco de perda de audição causado pelo excesso de ruído leis semelhantes poderiam ser aprovadas, “tornando restaurantes mais silenciosos obrigatórios”.

Minhas respostas a esses comentários tendem a ser educadas mas nada afirmativas. Às pessoas que pedem que eu inclua o volume do ruído em decibéis, respondo que isso me parece uma precisão falsa, porque variáveis como o dia da semana e o número de mesas para seis ou mais pessoas que estejam ocupadas podem ter muita influência sobre o nível de ruído. A outros respondo que precisaria de mais tempo e de mais informações antes de encarar um assunto tão complicado.

A verdade é que adoro restaurantes barulhentos. Não todos eles, não todo o tempo. Também aprecio mais do que alguns poucos restaurantes silenciosos, onde é possível concentrar a atenção na comida e na conversa sem distrações auditivas. Mas tantos dos lugares de que mais gosto tendem a ser, pelo menos um pouco, barulhentos que me ocorreu que talvez o que eu goste neles seja o barulho.

Ter a maior parte de minha capacidade auditiva intacta decerto ajuda minha apreciação; se eu tivesse mais dificuldade para conversar enquanto desfruto do meu coquetel de camarão, minha atitude provavelmente seria diferente.

A maioria dos ruídos em nossas vidas são subprodutos acidentais de atividades de que necessitamos ou no mínimo toleramos por motivos que nada têm a ver com o barulho que geram. Não amamos o ruído das sirenes de ambulância, a pisada de brontossauro dos caminhões de lixo ou o rangido metálico dos trens, mas os aceitamos até que alguém encontre maneira mais silenciosa de transportar pessoas doentes, lixo, e passageiros na hora do rush.

Mas o barulho dos restaurantes é um subproduto de que atividade exatamente? Dos garçons se movendo de mesa em mesa (com sapatos de sola de borracha)? Do dinheiro sendo manuseado (em forma de cartão de crédito)? De panelas e frigideiras arremessadas por cozinheiros zangados (por trás de portas de vaivém ou em cozinhas abertas nas quais quase ninguém fala)?

O que se ouve em uma brasserie lotada do centro em uma noite de sexta não é nenhuma dessas coisas. O que ouvimos são principalmente as vozes não amplificadas dos fregueses, acompanhadas por sons amplificados de música, normalmente gravada.

Alguns chefs e proprietários adoram tocar a música que amam em volumes dignos de um fã adolescente do Metallica, mas na maioria dos restaurantes a música serve apenas de pano de fundo ao barulho criado pelos fregueses. Restaurantes são barulhentos porque somos barulhentos. Com algumas poucas exceções, quando reclamamos do barulho estamos reclamando de nós mesmos.

Se você acredita que a função primária de um restaurante é servir comida, não faz sentido que reajamos erguendo nossas vozes. Mas saímos de casa por outros motivos. Saímos para olhar o que nos cerca, talvez para que pessoas nos percebam, e usualmente para conversar com as pessoas que nos acompanham. Entre nós há aqueles que querem tomar um drinque ou dois, e quase todos desejamos relaxar os nós de tensão do cotidiano.

Longe de ser um efeito colateral não planejado, um restaurante barulhento é o produto final pretendido de um negócio que nos ajuda a nos divertirmos, da mesma forma que um ronronar é o produto final de coçar a cabeça de um gato da maneira certa.

O que transforma um som em barulho é subjetivo. Um ruído é um som que surge em sua cabeça sem que você o deseje. Os profissionais de som chamam os sons que desejamos de sinal. No ambiente de um restaurante, tipicamente definimos como sinal as vozes das pessoas que estão sentadas conosco, e mais as vozes de atendentes que estejam falando com nossa mesa naquele momento.

Isolar uma voz em meio a uma sala repleta de pessoas falando é um trabalho complexo. Quando somos jovens nossos ouvidos são bons nisso, dentro de determinados limites de volume, mas à medida que envelhecemos a tarefa se torna cada vez mais difícil.

Esse pode ser mais um problema de tecnologia do que um problema dos restaurantes. Há maneiras de reduzir o barulho, no entanto, como placas absorventes no teto, almofadas de espuma e até mesmo cordas envolvendo canos e pernas de mesa. Os equalizadores podem ser ajustados de forma a atenuar o som da música nas frequências que mais conflitam com a conversação.

De tempos em tempos, todos queremos uma sala de refeições onde seja possível conversar e ser entendido sem mímica. Existem lugares assim, mas eles estão sempre mudando. A cantina inaugurada um mês atrás que gera filas de fregueses na porta pode ser estrondosa hoje e um oásis de calma dentro de um ano, quando as multidões já tiverem mudado de paragem.

Encontrar esses oásis quando você deseja não é um problema de restaurantes; é um problema de informação.

Restaurantes plácidos parecem ser uma preferência minoritária, porém. Existe alguma coisa no coquetel sonoro de conversas altas e música de fundo que agrada muita gente, porque é esse o som da maioria dos restaurantes de sucesso modernos.

Mas uma mixagem precisa é importante. Se você chega a um restaurante onde a combinação é a oposta —a música é muito alta e ninguém está conversando—, é provável que logo decida sair.

Há outros momentos em que o silêncio pode nos causar mais desconforto que o ruído. Em uma festa, quando a música para de repente incomoda, de primeira, e continua ligeiramente desagradável mesmo depois que você se ajusta à situação. Se a música não voltar mais, as pessoas vão embora, o que, acredito, é o que aconteceria em qualquer grande restaurante que tentasse funcionar completamente sem música.

A despeito das provas de que para muitos de nós o barulho dos restaurantes seja um atrativo e não um defeito (ou, no mínimo, é tanto um atrativo quanto um defeito), aposto que os defensores de volumes mais baixos nos restaurantes vão passar a se manifestar de modo mais ruidoso. A ideia de um barulho que não podemos controlar está se tornando inconcebível.

Ao longo de nossas vidas cotidianas, sons que estávamos acostumados a ouvir foram eliminados ou filtrados. No começo de minha carreira, escritórios eram espaços vivos. Telefones tocavam. Máquinas de escrever soavam. Às vezes um rádio era audível ao longe. E as pessoas falavam o tempo todo ao meu redor, no telefone e entre elas.

Mas hoje acomodamo-nos em cubículos, com os olhos voltados para a frente e as bocas fechadas.

Nossos colegas se comunicam conosco via aplicativos, mesmo que estejam sentados ao lado. Os conhecidos de trabalho usam o email. Os amigos recorrem a mensagens de texto. Ninguém mais fala ao telefone, e a música é canalizada diretamente para dentro de nossas cabeças.

Pela primeira vez na história podemos adequar a maioria de nossos ambientes sônicos às nossas preferências, quer estejamos em casa, quer não. No nosso caminho decidimos o que desejamos ouvir, escolhendo de uma jukebox invisível que oferece, como escreveu Ben Ratliff, ex-crítico musical do The New York Times, no título de um livro, “Todas as Canções já Gravadas”, para não mencionar milhares de podcasts que começarão e terminarão exatamente quando quisermos.

Quando enfiamos estranhas hastes brancas nos ouvidos ou usamos fones de ouvido que “cancelam sons”, e quando fechamos as janelas do carro e ligamos o ar condicionado, não precisamos escutar sons que não tenhamos escolhido. Ou que não tenham sido escolhidos para nós pelos prestativos algoritmos de um serviço de streaming de música. A vida no século 21 significa nunca ter de ouvir o pedido de desculpas da pessoa que pisou no seu pé.

A não ser que você esteja em um restaurante. Se alguém pisa no seu pé em um restaurante lotado, você normalmente ouve o pedido de desculpas. Por trás de você alguém está conversando sobre “BoJack Horseman”, o que é engraçado porque é a mesma conversa que você teve com seus amigos cinco minutos antes. Será que a ideia saltou de sua mesa à deles, como um vírus? Para além da mesa ao lado, quem sabe do que as pessoas estão falando? Tudo o que se ouve é um estrondo longo e contínuo.

Na era anterior à dos fones de ouvido, uma conversa telefônica entre sua chefe e a mãe dela, ouvida por acaso, revelava mais sobre o relacionamento dessas duas pessoas do que sua chefe jamais lhe contaria.

Sem os fones de ouvido, até os silêncios podiam ser reveladores: o silêncio da procrastinação é diferente do silêncio da concentração.

existe informação no ruído dos restaurantes. Pessoas que estão começando a se conhecer são ruidosas de um modo, e velhos amigos são ruidosos de maneira completamente diferente. 

Mesmo que nossos ouvidos não sejam aguçados o bastante para executar uma análise sociológica detalhada da sala, são capazes de distinguir uma mensagem em meio ao pulsar. É um som muito antigo, o som de pessoas que decidiram se acomodar por algumas horas no mesmo espaço, com comida e bebida diante delas, parentes e amigos ao seu lado, e esquecer as bestas ferozes contra as quais lutaram o dia inteiro.

Os restaurantes estão entre os últimos lugares restantes em que grupos de pessoas soam como antes da era do Auto-Tune e dos “deep fakes”. Ninguém descobriu como fatiar, ordenar e manipular a maneira pela qual respondemos uns aos outros quando estamos nos divertindo juntos. Esse é o sinal em meio ao ruído.

Tradução de Paulo Migliacci

Pete Wells é crítico de restaurantes do New York Times desde 2012

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