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Cinema

'Acossado', que completa 60 anos em 2020, reflete tempos nervosos de hoje

Estreia de Jean-Luc Godard e rodado em 23 dias, filme é um dos principais clássicos da nouvelle vague

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Roberto Muggiati

Um grupo de jovens franceses, depois de anos escrevendo sobre cinema na revista Cahiers du Cinéma, decidiu partir para seus próprios filmes. Nascia a nouvelle vague.

Em 1959, Claude Chabrol já fazia um bom dinheiro e François Truffaut foi premiado em Cannes por “Os Incompreendidos”. Prestigiados, convenceram o produtor Georges de Beauregard a bancar o primeiro longa de Jean-Luc Godard, o crítico mais exigente e cáustico da revista.

Truffaut sugeriu o tema, inspirado numa notícia de jornal. O roteiro foi rabiscado por Godard num caderno escolar: “Vai ser a história de um rapaz que pensa na morte e de uma garota que não pensa”.

O anti-herói de “Acossado”, filme que completa 60 anos em 2020, foi interpretado pelo novato Jean-Paul Belmondo. Como atriz principal Godard buscou alguém de nome. A americana Jean Seberg havia estrelado “Santa Joana” (1957), de Otto Preminger, que escolheu uma desconhecida para o papel de Joana d’Arc após maratona de 18 mil candidatas. Seus cabelos foram raspados para as filmagens. Os cabelos de rapaz na cabeça redonda perfeita seriam o grande charme de Seberg, e ela recebeu US$ 15 mil, um sexto do orçamento do filme.

Na trama, Michel Poiccard, 26 anos (idade de Belmondo), rouba um carro, fura uma blitz e mata o policial que o persegue. Em Paris, procura a estudante americana Patricia Franchini (Jean Seberg, 20 anos), que vende o jornal New York Herald Tribune no calçadão da Champs Élysées.

Apaixonado, mas sem dinheiro, sai atrás de um tipo que lhe deve algum. Seu nome e sua foto já estão nos jornais. As cenas de rua, feitas sem permissão oficial, são de uma espontaneidade admirável. O ritmo das filmagens —foram 23 dias, de agosto a setembro de 1959— é caótico.

A trilha de Martial Solal, jazzista nascido em Argel, fazia uma exaltação à Paris, antecipando em mais de dez anos “O Último Tango”.

De repente, a agitação das ruas cessa e mergulhamos no mundo interior do casal. Na cena mais longa do filme — 27% do total— Godard e uma pequena equipe registram o duelo verbal-emocional entre Michel e Patricia no sufocante quartinho de hotel dela.

Nestas cenas íntimas, com Belmondo de cueca samba-canção, Godard mostra como o amor pode ser chato e sem futuro. Mas as curvas suaves da nuca de Patricia redimem tudo.

Acuado, Michel se esconde. Patricia passa a noite com ele. De manhã, sai para comprar leite e jornais. Para se proteger daquele amor bandido, telefona à polícia e entrega Michel. De volta ao estúdio, conta o que fez e insiste para que ele fuja. Michel fica. Sai à rua para receber o dinheiro que o amigo finalmente lhe entrega. A polícia chega e atira. Baleado nas costas, Michel corre, depois cai estatelado.

Olhando para o céu, na cena final icônica, diz suas últimas palavras (tradução da versão brasileira do filme): Michael: "É mesmo asqueroso ('dégueulasse')". Patricia se pergunta o que significa asquerosa (“dégueulasse”). Até hoje se discute o significado da palavra. Basicamente, vem do verbo “dégueuler”, vomitar, com toda sua carga visceral-existencial.

Ironicamente, 19 anos depois, Jean Seberg foi enterrada a poucos metros do local onde Michel morreu, no cemitério de Montparnasse, na companhia de Sartre, Simone de Beauvoir, Baudelaire e do escritor Carlos Fuentes, com quem teve um tumultuado caso quando filmava no México em 1970.

Ao voltar aos Estados Unidos no final dos anos 1960, Seberg colaborou com os Panteras Negras e se tornou alvo da perseguição do FBI, história contada no filme “Seberg Contra Todos”. O desgaste a levou a várias tentativas de suicídio, até a última, bem-sucedida, em 1979.

Jean-Luc Godard, 89; Martial Solal, 92, tocando e compondo como nunca; e Belmondo, 87, são os grandes sobreviventes. E, é claro, o “Acossado”. Na lista decenal dos melhores filmes de todos os tempos, feita com rigor científico pelos críticos da revista Sight and Sound e o British Film Institute, ele ocupava o cabalístico 13º lugar em 2012.

Não me surpreenderia se, na relação de 2022, desbancasse “Um Corpo que Cai”, assim como o filme de Hitchcock desbancou “Cidadão Kane” em 2012. Vivemos cada vez mais os tempos nervosos de “Acossado” do que o clima sobrenatural do longa de Hitchcock. Embora alguns ainda possam considerar o road movie niilista de Godard uma coisa bastante “dégueulasse”.

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