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Filme de Karim Aïnouz mostra aeroporto que foi de joia nazista a abrigo

Documentário registra cotidiano de refugiados de guerra nos hangares do Tempelhof, em Berlim

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São Paulo

Não deixa de ser irônico o momento em que o documentário "Aeroporto Central", de Karim Aïnouz, chega ao streaming.

Quando o longa já disponível nas plataformas sob demanda foi filmado, quatro anos atrás, os refugiados que acompanhava enfrentavam uma situação excepcional –confinados num aeroporto abandonado em Berlim à espera de asilo, não sabiam quando ou para onde sairiam dali.

Agora, com a pandemia do novo coronavírus, o resto do mundo parece estar no mesmo barco.

Questionado, Aïnouz diz que não é a única ironia do filme, impedido de estrear nos cinemas por causa da Covid-19. O lugar que ele retrata, o aeroporto de Tempelhof, se pretendia, afinal, um ícone hitlerista nos anos 1930. Foi de prisão na Segunda Guerra Mundial a base militar americana antes de virar, há cinco anos, o maior abrigo para refugiados da Alemanha.

Também seus protagonistas, o jovem sírio Ibrahim Al Hussein e o fisioterapeuta iraquiano Qutaiba Nafea, não poderiam estar mais distantes dos clichês árabes que, segundo o cineasta, são reproduzidos na mídia hegemônica europeia.

O primeiro, um jovem sereno, compenetrado, deixou os pais e sete irmãos em Aleppo, uma das cidades mais devastadas pela guerra civil na Síria. Já o segundo decidiu abandonar a vida em Mossul, no norte do Iraque, depois de perder o irmão caçula e o colega de quarto. Sonha voltar à faculdade de medicina, que cursava no país de origem.

Os dois foram escolhidos entre oito pessoas, solicitantes de asilo ou funcionários do aeroporto, acompanhadas de perto ao longo de um ano.

"Achei que esta era uma oportunidade de olhar a estereotipação do jovem imigrante e trazer um olhar mais íntimo, singular", afirma Aïnouz, acrescentando que outro morador de Tempelhof, tunisiano, foi erroneamente acusado de terrorismo pela polícia na época das filmagens.

Além disso, continua o cineasta, Al Hussein e Nafea foram os que mais pareciam sedentos por contar suas experiências. Eles foram, por exemplo, os que mais escreveram nos cadernos distribuídos pela produção –os textos de Al Hussein foram inclusive adicionados ao filme, narrados em off.

Os escritos mostram uma experiência próxima daquela vivida pelo próprio diretor há mais de 30 anos, quando, adolescente, foi morar na França com o pai argelino. Lá, conta, descobriu que seu nome de batismo, Karim, fazia dele "não bem brasileiro, mas árabe". "Tive a sensação de não ser bem-vindo, e acho que vi isso no Ibrahim."

Al Hussein, Nafea e outros moradores e prestadores de serviço do aeroporto são, na maioria das vezes, observados de longe, de uma câmera montada num tripé. As conversas que travam são banais, quando não burocráticas. Vez ou outra, uma criança –ou um idoso, numa das cenas mais interessantes do filme– quebra a monotonia.

À medida que o filme avança, os planos se distanciam cada vez mais da claustrofobia dos hangares e se voltam para o mundo lá fora. Como se incorporassem o olhar dos refugiados, mostram as estações que passam, uma atrás da outra, enquanto ali dentro tudo continua igual.

A opção pela câmera parada tem a ver com o processo de pesquisa para o filme, explica Aïnouz. Ele passou seis meses frequentando Tempelhof sem poder filmar.

"Uma coisa a que nós, diretores, não estamos habituados é a escuta. Quando conseguimos rodar, entendi que tinha que estar ali para observar, mais do que inferir algo sobre o que estava acontecendo."

Uma prática a que Aïnouz, que fez carreira no cinema de ficção –seu último longa, "A Vida Invisível", conquistou um prêmio inédito para o Brasil em Cannes no ano passado–, parece se voltar cada dia mais.

Mesmo que, ele esclarece, não haja tantas diferenças entre contar histórias reais, como a que lança agora, ou inventadas. "Num, você tem take um. No outro, tem dois, três, quatro."

Finalizado há dois anos, "Aeroporto Central" foi o primeiro de três documentários realizados pelo diretor em sequência. No Festival de Berlim deste ano, ele apresentou "Nardjes A.", que mostra a convulsão política na Argélia do ponto de vista da jovem militante do título. Agora, monta "Argelino por Acidente", em que investiga sua relação com o país paterno.

"Mais do que escolher, estou sendo escolhido. 'Nardjes A.', por exemplo, eu fiz porque a TV argelina se recusava a mostrar os protestos, e eu tinha uma câmera", diz ele. "O documentário me pegou a reboque, o real nos últimos anos tem me interpelado muito."

Indagado sobre a crise do cinema do país, iniciada no ano passado e agravada pela pandemia, as preocupações do diretor também parecem estar mais no campo do factual do que no da ficção.

"Por enquanto, minha luta é política. É inocente achar que vamos reconquistar o audiovisual dentro de um governo como esse. Na hora em que temos uma palhaça como secretária de Cultura, fica difícil", ele responde.

Aeroporto Central

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