Brasil dividido e Argélia politizada inspiram novo longa de Karim Aïnouz

'Nardjes A.' mostra dia de militante argelina e foi exibido no Festival de Berlim

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Berlim

Dez meses após ganhar o prêmio da mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes, por “A Vida Invisível”, o cineasta cearense Karim Aïnouz já está de volta a uma grande mostra internacional. Na Berlinale, o diretor apresenta “Nardjes A.”, documentário sobre manifestações políticas recentes na Argélia, a partir do engajamento de uma jovem militante antigoverno.

Exibido na mostra Panorama, o longa é uma de duas obras que Aïnouz filmou enquanto esteve na Argélia, no começo do ano passado. O outro filme, ainda não concluído, trará o cineasta em busca de suas próprias raízes: de ascendência argelina, ele foi atrás de familiares no país.

 

“Eu fui com a ideia desse reencontro. Mas cheguei lá e vi tudo acontecendo [as manifestações], então aproveitei para registrar aquilo também”, disse o cineasta à Folha, logo após a sessão de estreia de “Nardjes A.” em Berlim.

Na Argélia, ele conheceu a jovem cujo nome dá título ao filme: uma garota moderna, idealista e inesperadamente empoderada – isso se pensarmos que, em seu país, majoritariamente islâmico, as mulheres ainda sofrem várias restrições sociais.

“Mas nas manifestações existe um bloco só de feministas”, faz questão de explicar Nardjes, também presente em Berlim. “Elas são bastante ativas, dentro do que lhes é permitido”, diz.

O filme traz um dia na vida de Nardjes, em fevereiro de 2019: uma sexta-feira, dia da semana que se tornaria data de ir para as ruas protestar. A causa dos manifestantes era, a princípio, evitar que o então presidente, Abdelaziz Bouteflika, tido como corrupto, disputasse pela quinta vez o cargo.

As manifestações, conhecidas como “hirak”, retomam a tradição de luta do povo da Argélia, cujo ápice se deu em 1962, quando o país se tornou independente da França.

“Minha ideia da Argélia era a do país da revolução dos anos 1960, que ouvia meu pai contar. Só que, quando cheguei lá, tive outra impressão: a de um país em que bateram muito, que tinha sofrido pra caramba”, conta Aïnouz. “Mas, ao ver essas manifestações, de certa forma voltei a ter uma visão que se aproximava daquele país que não existe mais.”

O corpo do filme é formado sobretudo de trechos dessa manifestação em fevereiro, que não difere muito das do Brasil, a não ser por ser amplamente formada por homens jovens – muito embora, haja também idosas e crianças que participam livremente. O clima parece pacífico, apesar de Aïnouz dizer que foi uma opção estética manter só a parte mais “leve” da jornada.

“Queria fazer um filme que falasse de alegria”, explica o diretor. E Nardjes acrescenta: “Por que procurar a repressão? Aquilo ali [o caráter pacífico do protesto] também é real!”.

Aïnouz diz que idealizou o filme após o choque da eleição de Jair Bolsonaro. “Confesso que sofri um trauma: de repente, um palhaço assassino se torna presidente. E o Brasil completamente dividido. Mas aí eu chego a um país onde se passa o contrário: as pessoas estão unidas. E é isso que é preciso fazer: todos se unirem contra o inimigo certo.”

A incansável luta de Nardjes e da juventude progressista funcionou parcialmente: Bouteflika desistiu da quinta candidatura. Mas a estrutura política argelina não mudou tanto, e os protestos por mudanças permanecem até hoje. Nardjes acha que cabe a sua geração tomar a linha de frente, em todos os lugares onde haja insatisfação política: “Façam sua guerra, mas com muito amor. E muita paz”, aconselha.

O cineasta Gustavo Vinagre conseguiu o feito de ter um longa selecionado em Berlim pelo segundo ano consecutivo. Exibido na mostra Forum, que destaca obras que questionam os próprios limites do cinema, “Vil, Má” dá continuidade a um projeto estético que Vinagre iniciou com “Lembro Mais dos Corvos” (2018) e prosseguiu com “A Rosa Azul de Novalis” (2019).

O documentário com ares de ficção tem desta vez como foco Wilma Azevedo, uma mulher de 74 anos que se tornou conhecida a partir dos anos 1970 como uma das grandes escritoras e especialistas em sexo sadomasoquista no Brasil. Escreveu contos eróticos para diversas publicações e, no auge, recebia rios de cartas de leitores fetichistas, que clamavam por ter a oportunidade de colocar na prática com ela suas fantasias.

Na competição oficial, o alemão “Undine”, de Christian Petzold, foi bem recebido pela crítica. Narra uma trama com ares de fantasia, em que uma moça tem seu destino atrelado ao da lenda de Ondina, criatura mitológica condenada a matar o homem que ama se ele um dia a abandonar.

Petzold faz um paralelo de intenções obscuras entre a formação da cidade de Berlim e a vida dos personagens.

Ainda na competição, “Siberia”, do americano Abel Ferrara traz um filme-mistério no estilo David Lynch, apresentando situações descontínuas, com imagens oníricas e bizarras, algumas repugnantes, em uma narrativa semiabstrata que não tem o menor interesse em fazer sentido.

Mas quem se importa em entender o filme em sua totalidade, quando se tem Ferrara criando imagens visualmente impactantes, mais uma vez com Willem Dafoe fazendo as vezes de seu alter ego?

Foi até o momento o filme que mais teve jornalistas abandonando a sala antes do final. No final, ouviram-se aplausos admirados, além de risos de uma cumplicidade de quem não tinha muita certeza do que acabou de ver, mas que havia apreciado a viagem.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.