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Ao se isolar, Thoreau aprendeu a perder o medo da solidão

Autor americano impôs a si uma quarentena para reavaliar a forma mesquinha como vivemos e contou tudo em 'Walden'

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João Pereira Coutinho

Amigos ansiosos, temendo o efeito da quarentena em suas cabeças, pediram dicas pessoais e literárias para sobreviver. No meu caso, elas convergem –não tenho nada para lhes oferecer que não tenha aprendido com “Walden”, de Henry David Thoreau.

Obra estranha, essa, para um urbano-depressivo como eu. Não seria capaz de viver na mata. A natureza, como alguém dizia, são bichos comendo outros bichos —até o momento em que eles percebem que o nosso próprio corpo é o melhor manjar.

Sou um eremita das cidades. O cheiro dos escapamentos é para mim Chanel N° 5. Mas quem disse que “Walden” só funciona para quem abandonou a civilização e se entregou à vegetação selvagem?

A obra de Thoreau é o relato de uma pausa —uma quarentena de dois anos e dois meses– em que o autor se propõe “viver deliberadamente”, confrontando “os fatos essenciais da vida”.

O escritor americano Henry David Thoreau
O escritor americano Henry David Thoreau - Reprodução

E o primeiro desses fatos, para Thoreau e para nós, é a forma mesquinha como vivemos, eternas formigas correndo de um lado para o outro, alimentando o nosso ciclo de desejos com novos desejos que serão sempre impossíveis de saciar. “Nossa vida se perde no detalhe”, escreve Thoreau –até chegar um vírus exótico que acaba momentaneamente com a festa.

Protestamos. Que injustiça! Sentimo-nos enganados, atraiçoados, perdidos. Mas fomos nós que nos perdemos em mil tarefas inglórias, sempre em busca dessas ridículas noções de grandeza e magnificência.

Por falar em formigas, imagino que esse tal de coronavírus deve olhar para nós como Thoreau olhava para os insetos que se guerreavam junto a uma pilha de tocos –seres patéticos e insignificantes, lutando continuamente entre eles, sem terem noção de sua própria pequenez.

Para elas, as formigas, o campo de batalha é Austerlitz, onde se joga o destino de uma civilização. Para Thoreau, é um espectáculo cômico. E mudo –nem um som lhe chega aos ouvidos.

Perspetiva é humildade –e o momento pede humildade, amigos.

Mas pede mais. “Simplifiquem, simplifiquem”, aconselha Thoreau. Esse processo de despojamento começa nas pequenas coisas. Até na mobília, imaginem, que deve ser lida como metáfora para as inutilidades que fomos acumulando sem desígnio.

Imagino os meus amigos, encerrados em casa, contemplando pela primeira vez essa coleção de inutilidades que só servem para acumular pó em excesso. Sem visitas para impressionar, sem colegas para enciumar, são apenas objetos mórbidos, monumentos à insegurança psicológica e à inferioridade social. Quem precisa deles quando eles não são mais precisos?

E quem precisa dessas visitas ou desses colegas? Não é só a mobília que rouba espaço; os outros, os figurantes do cotidiano, também nos roubam tempo.

“O valor de um homem não está em sua pele, para precisarmos tocá-lo”, escreve Thoreau. Sábias palavras. Quantas das nossas horas não foram desperdiçadas em contextos sociais, artificiais, superficiais, como se o valor de um homem dependesse sempre desse gesto canino de nos farejarmos mutuamente para termos a confirmação de que existimos deveras?

Thoreau ensina –nós somos a nossa primeira companhia. Se não a suportamos agora, se a tememos, se a desprezamos, dificilmente seremos boa companhia para alguém.

No lago Walden, Thoreau aprendeu que “todo o homem é senhor de um reino do qual o império terreno do czar não passa de um estado minúsculo”. Se essa quarentena não servir para visitarmos o nosso reino abandonado, para abrir as janelas, para podar o jardim, servirá para quê?

Quando perdemos o temor da solidão, a própria solidão deixa de ser solidão. E o silêncio deixa de ser silêncio porque passaremos a escutar “tudo o que o vento traz”.

Os livros, aliás, também são dos melhores mensageiros –e o gosto pela leitura é um seguro de vida que dura toda a vida. Mas os livros, ensina Thoreau, devem ser lidos “com a deliberação e o recato com que foram escritos”.

Não se trata de uma leitura utilitária, maquinal, trivial, feita para matar as horas. Pelo contrário, a leitura que alimenta os espíritos famintos existe para suspender as horas. Como se a imortalidade fosse possível, ou até desejável.

Aos meus amigos, direi para lerem Thoreau. E roubarei as palavras do escritor, que em poema exortava "Dirige teu olhar para dentro de ti/ E mil regiões encontrarás ali/ Ainda ignotas. Percorre tal via/ E mestre serás em tua cosmografia".

Só assim o inverno acaba e a primavera chega. As páginas mais sublimes de “Walden” são os capítulos finais, quando o lago começa o seu degelo, as aves retornam, a vegetação renasce –e o autor também. “Só amanhece o dia para o qual estamos despertos”, afirma Thoreau.

Amigos, que a quarentena sirva para aprendermos a estar despertos, e não apenas dispersos. E quando essa manhã chegar, limpando os medos de agora, que possamos repetir as palavras que Thoreau tomou de empréstimo aos profetas “Onde estava, ó morte, teu aguilhão? Onde estava, ó túmulo, tua vitória então?”.​

Walden

  • Autoria Henry David Thoreau
  • Editora Edipro (R$ 45); L&PM (R$ 29,90)
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