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Livro após livro, Sérgio Sant'Anna sublinhou a fragilidade do Brasil

Talvez a manifestação principal seja: como pode tanta gente acreditar que sociedade brasileira se refez depois da ditadura?

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Ricardo Lísias

Um ano depois de participar das manifestações de maio de 1968 na França, Sérgio Sant'Anna retorna ao Brasil e publica "Os Sobreviventes", seu livro de estreia.

Enquanto a ditadura vai recrudescendo ele lança nos anos 1970 mais um livro de contos e dois romances. "Confissões de Ralfo", publicado em 1975, é uma espécie de colagem (procedimento que sempre praticou muito bem) de inúmeros estilos que compõem a biografia imaginária de um escritor angustiado.

Havia já ali a concepção das personagens que ele desenvolveria na década seguinte: a pessoa fragilizada diante de um mundo que não a aceita e que ela, por sua vez, não consegue apreender.

Em 1983 Sant'Anna publica "O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro", reunião de contos que o colocaria dali em diante como o nosso principal praticante do gênero. O texto que dá título ao livro resume bem as qualidades do escritor imenso: enorme apuro formal, associações inusitadas e cheias de significado, uma análise aguda e inquieta da cultura brasileira e sobretudo a percepção de que não havia o que comemorar na então celebrada redemocratização.

Desde o início, Sérgio Sant'Anna sublinha, livro após livro, a fragilidade do Brasil. A colagem de fragmentos, portanto, é a forma adequada para constituir um discurso que nunca se fecha e que parece sempre dobrar-se à força destrutiva que faz parte desde sempre da nossa sociedade. O absurdo tratado com espanto contido e melancólico está em "A Tragédia Brasileira" e no erotismo fraturado de "A Senhorita Simpson".

A partir dos anos 1990, Sant’Anna publica uma impressionante sequência de livros, à razão de mais ou menos um a cada três anos. Todos mantêm o apuro formal e a observação aguda da precariedade brasileira. Nenhum se destaca sobre os outros, pois o que parece existir no caso é a criação contínua de um painel: de estilhaço em estilhaço, personagens deslocadas, insones e perdidas diante da necessidade de sobreviver no mundo não apenas hostil como cínico. Talvez seja essa a manifestação principal de seus últimos textos: como pode tanta gente estar acreditando que a sociedade brasileira de fato se refez depois da ditadura?

Os últimos anos comprovaram, com um grau radical de violência e desfaçatez, as hipóteses de Sergio Sant´Anna. Quanto a isso, sua voz não cessava de destacar o espanto da nossa degradação. Algo precisa ser dito com clareza: junto com o nosso grande ficcionista, o que parece estar partindo com a gigantesca tragédia do nosso tempo é o espírito de 1968, a liberdade, a recusa a qualquer conservadorismo, a ousadia e o espírito fortemente crítico diante de qualquer poder. É triste, muito perigoso e sobretudo nos deixa extremamente mais pobres e vulneráveis à burrice que nos circunda e afoga.

Ricardo Lísias é escritor, autor de 'A Vista Particular'

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