Arquivos e museus estão em busca de relatos de experiências da pandemia

Cápsulas do tempo devem contar ao futuro como enfrentamos o novo coronavírus

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Rio de Janeiro

Os últimos meses, passados por boa parte da humanidade dentro de casa, parecem um filme, ora de terror, ora de ficção científica, repleto de pessoas de máscaras com medo do contágio invisível e temerosas de aproximações.

Que o futuro possa entender nosso presente tem sido a preocupação de museus e arquivos pelo mundo, que estão recolhendo e guardando relatos e evidências deste período.

“Os relatos vão permitir às pessoas do futuro saber quem éramos nós, como vivíamos e o que estamos sentindo que vai ser diferente”, diz Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

A instituição de 127 anos lançou em maio o projeto Testemunhos do Isolamento, que recebe depoimentos sobre a experiência da pandemia. “Talvez ajudemos o futuro a entender que existia um mundo antes dessa pandemia e como esse mundo desapareceu”, diz Kushnir.

Para participar, o colaborador preenche um formulário online, descrevendo sua experiência no isolamento social e como tem acompanhado o desenrolar da pandemia.

“Os arquivos públicos não são um lugar de depósito de papel velho, mas um mecanismo de inclusão. Com seus relatos num arquivo, as pessoas entendem que a história da cidade faz parte da história de suas vidas”, diz Kushnir.

Outros arquivos públicos estão promovendo chamadas semelhantes, como o Arquivo Municipal de Barcelona e o Arquivo Nacional da Costa Rica. Segundo o Conselho Internacional de Arquivos, 22 membros informaram que estão ativamente coletando material relacionado à Covid-19.

Diferentemente de museus e bibliotecas, os arquivos garantem o acesso a fontes primárias da história, que registram a experiência vivida imediata, afirma Anthea Seles, secretária-geral do conselho, com sede na França.

“A percepção de indivíduos e suas lutas pessoais durante o isolamento vão revelar a dimensão do trauma humano que não está nos documentos oficiais”, diz Seles. “Os relatos pessoais garantem que possamos nos relacionar com os indivíduos do passado, como se conversássemos com eles.”

Museus, como o da cidade de Nova York e o Smithsonian de História Americana também lançaram seus projetos, buscando reunir objetos. A New York Historical Society coleta termômetros, cartazes, propagandas de delivery, equipamentos de proteção e jogos de passatempo usados durante o isolamento.

“Tudo o que estamos vivendo é tão relevante para a humanidade que já nasce com valor histórico e museal”, diz Ana Cecília Rocha Veiga, professora de museologia da Universidade Federal de Minas Gerais que coordena o projeto Museus e Covid-19, um repositório virtual com informações sobre essas instituições durante a pandemia.

“Pela primeira vez em um evento internacional de tais proporções, grande parte das coleções em formação está lidando com objetos nascidos já em meio digital e não posteriormente digitalizados, o que facilita sua coleta e registro”, acrescenta.

O Museu das Coisas Banais, ligado à Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, está recolhendo objetos que despertem lembranças de pessoas queridas das quais estamos afastados. O museu virtual busca preservar imagens de coisas que tenham valor afetivo.

A historiadora da arte Amanda Laurentin diz que pôr objetos pessoais em museus rompe barreiras e aproxima as pessoas. “Todos temos memória afetiva, e o fato de isso estar acessível num museu, que historicamente é um lugar com o qual as pessoas não se identificam, toca as pessoas e as aproxima da instituição.”

A equipe do museu americano David J. Sencer, dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, em Atlanta, está recolhendo, além de relatos em primeira pessoa, imagens de fotojornalistas, documentos e artefatos usados pelas equipes da linha de frente de combate à pandemia.

No Brasil, a Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fiocruz, vai fazer um trabalho semelhante. Aos 120 anos, a instituição no Rio de Janeiro, com vasta experiência em epidemias, tem desempenhado papel de destaque no enfrentamento ao coronavírus.

No projeto Arquivos da Pandemia, que vai ao ar nos próximos dias, estarão as experiências de pesquisadores, médicos, técnicos de laboratórios, estudantes e moradores do entorno da entidade que serão recolhidas.

“Para além de toda a produção de informações que a Fiocruz disponibiliza, existe um dever de capturar experiências e percepções individuais que poderão nos ajudar a refletir sobre o perfil da nossa comunidade”, diz Luciana Heymann, historiadora e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz.

“O olhar que se desloca entre passado e presente é muito importante para a reflexão e tomadas de decisões institucionais”, diz. Heymann lembra que, antes dos projetos de recolha de relatos que se multiplicaram pelos Estados Unidos quando do impacto do 11 de Setembro, foi a memória do Holocausto que estimulou a importância dos relatos individuais.

“O anseio por produzir registros de experiências individuais que abarquem os cidadãos, e não necessariamente personagens da vida pública, se transformou numa marca de nosso tempo”, diz ela.

Historiadoras, cientistas, artistas, comunicadoras, desenvolvedoras e educadoras se reuniram no projeto virtual Cartografia das Memórias, que busca registrar e preservar, através de relatos orais, as memórias da pandemia.

No site do Cartografia, um mapa de vozes, há uma centena de testemunhos, vindos de nove países. A ideia surgiu durante um laboratório online da Silo, uma organização que acolhe e a difunde projetos culturais em zonas rurais.

Os relatos recolhidos são variados, conta a bióloga Keila Zaché, uma das criadoras. “Há, porém, um cruzamento das sensações e emoções quando relacionadas ao medo, mas também em relação à expectativa e à esperança de um futuro diferente”, diz. As palavras-chave usadas pelo grupo para arquivar os áudios mostram que os assuntos mais abordados giram em torno de família, futuro, medo, fé e política.

A Unesco, por meio de seu programa Memória do Mundo, que estimula e apoia a salvaguarda de documentos, declarou que, neste momento de crise global da saúde, “a herança documental é um importante recurso que permite perspectiva histórica sobre como governos, cidadãos e a comunidade internacional trataram a pandemia”.

É possível vislumbrar como esses acervos devem ecoar em outras gerações ao olhar para arquivos já estabelecidos sobre outras epidemias, como o do Museu da Imigração, em São Paulo, onde antes funcionou a hospedaria de imigrantes e migrantes.

O acervo tem cerca de 12 mil objetos, muitos deles relacionados à área médica, e sua documentação hoje se encontra no Arquivo Público do Estado. Na série Hospedaria em Quarentena, um especial no site da instituição, o arquivo é mobilizado para relacionar a imigração e as epidemias em São Paulo.

Henrique Trindade, historiador e pesquisador do museu, lembra que ali funcionou o maior hospital da cidade durante a gripe espanhola e que toda a sua história foi marcada por doenças contagiosas.

Previsto para 1888, o lugar foi inaugurado um ano antes por causa de uma epidemia de varíola que atingiu a antiga hospedaria, no Bom Retiro. A partir de então, viveu surtos de sarampo, escarlatina e tuberculose.

Foi ali, em 1906, que foram diagnosticados os primeiros casos de meningite da cidade. E foi logo depois da epidemia da doença em São Paulo, nos anos 1970, que a hospedaria deixou de funcionar.

Em seus arquivos é possível perceber, segundo Trindade, que as fake news já se espalhavam muito antes das redes sociais. Durante a crise da gripe espanhola, medos e boatos assombravam os moradores dos bairros operários vizinhos à hospedaria. Acreditavam, por exemplo, que nos hospitais era dado aos pacientes o chá da meia-noite, que os mataria.

Charlatões faziam fama e dinheiro com promessas de cura, e receitas para prevenção da doença se popularizaram, como uma com cachaça.

“Se a nossa sociedade e as autoridades que nos governam conhecessem melhor a história de outras epidemias no Brasil, certamente estaríamos mais preparados para enfrentar o coronavírus”, diz Trindade.


Onde colaborar

— História Oral na Pandemia, do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense

Áudios de idosos sobre o cotidiano durante o isolamento

historiaoralnapandemia@gmail.com

— #MemóriasCovid19, da Coordenadoria dos Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa da Unicamp

Relatos escritos, fotografias, desenhos, cartas, áudios, canções e vídeos

— Objetos que Aproximam, do Museu das Coisas Banais

Imagens de objetos que estão amenizando a saudade de quem você gosta

Testemunhos do Isolamento, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

Depoimentos sobre a experiência da pandemia

Cartografia das Memórias

Áudios sobre a experiência da pandemia

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