Descrição de chapéu

Desenhos de artista sobre jornais ilustram o surreal da pandemia

Na construção de um diário da quarentena, Tatiana Trouvé engrossa a tradição de arte que invade páginas da imprensa

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Os espaços domésticos, acanhados, talvez escuros demais ou cheios dos objetos que juntamos inúteis à nossa semelhança, são agora a única paisagem que temos ao alcance.

Essa paisagem interior, banhada em luz artificial, também nunca dependeu tanto das janelas —reais ou virtuais, as frestas que deixam vazar para dentro do isolamento o alarido entorpecente do mundo lá fora, as manchetes azedas da era da novíssima peste.

Em sua mais nova série, a artista italiana Tatiana Trouvé sobrepõe o tédio domiciliar às notícias aterradoras de nossas metrópoles contaminadas. Seu diário da quarentena, prática que viralizou, com o perdão do termo, entre artistas mundo afora, é uma coleção de primeiras páginas de jornal cobertas de desenhos de camas, cortinas, espreguiçadeiras, o cachorro da artista.

Sua casa, com armários abarrotados e visões fugazes de árvores num jardim, é o fantasma doméstico que atravessa as colunas de palavras, preto no branco, ou as fotografias surreais do momento atual, como os bodes marchando desimpedidos pelas ruas desertas de uma cidade no País de Gales, imagem que estampou a capa de uma edição recente do britânico The Guardian.

Um soldado sul-africano, metralhadora em punho, surge engolfado por uma visão do que parece ser a despensa da artista sobreposta à capa do Sunday Times daquele país. Roupas no varal ofuscam a visão de uma cidade esvaziada na primeira página do Frankfurter Allgemeine. Na Folha de S.Paulo, um rádio descansa ao lado de um sapato solitário à sombra de uma planta num dia em que a manchete noticiava que o governo paga até o triplo por instrumentos de combate ao vírus.

Trouvé vai na contramão do glitch, excessos digitais, feeds vertiginosos de memes, tuítes, áudios de WhatsApp. Sua visão do mundo confinado não poderia ter uma aparência mais retrô, tátil, carregada de nostalgia pelo que se pode tocar.

Enquanto museus do mundo se esforçam para catalogar, arquivar e depois explicar a experiência da pandemia partindo em grande parte dos áudios, dos plantões de notícias na TV, dos cardápios de aplicativos de delivery, a artista parece ver nas capas de jornais impressos um indício mais forte de realidade, o peso de uma vida testemunhada em tinta e papel.

Longe do brilho enganoso das telas, Trouvé prefere a opacidade estática dos jornais, as páginas arquivadas que historiadores do futuro talvez venham a desbravar caso o disco rígido dos computadores ou as nuvens digitais se tornem tão obsoletos quanto os disquetes ou CDs de outrora.

Não é a primeira vez que artistas subvertem a diagramação dos jornais na tentativa de forjar uma crônica do real. Na época da ditadura, Antonio Manuel tingiu de vermelho sangue páginas que anunciavam, em negrito, a “repressão outra vez”. Primeiras páginas do escândalo de Watergate foram mergulhadas em tinta da mesma cor por Antonio Dias, enquanto Paulo Bruscky e Cildo Meireles usaram os classificados para anunciar máquinas de gravar sonhos ou circular mensagens subversivas. Jac Leirner furou, nas rotativas, as páginas do Jornal da Tarde.

No mundo real, capas recentes dos diários, como a extensa lista de mortos no New York Times ou a chamada para ser lida num minuto sobre a frequência de mortos pelo vírus no país neste jornal, também flertam com a arte. Nada parece mais atual, aliás, que o resumo do clima no Jornal do Brasil no pós-AI-5 que alertava para “fortes ventos” e o “ar irrespirável”.​

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