Uma das maiores habilidades de um escritor é saber posicionar um assunto em determinado ponto da história, deixá-lo ali, e então voltar depois para buscá-lo —muitas vezes, aproveitando a questão até para amarrar o desfecho da trama. É um truque a ser usado com moderação, sob o risco de arruinar toda a estrutura do texto.
Pois a comediante australiana Hannah Gadsby, 42, vem agora provar que teorias são legais, mas existem para ser burladas. Seu novo show “Douglas”, disponível na Netflix, é a prova concreta do pleno domínio da linguagem cômica, o que lhe permite abusar da tal manobra estilística numa frequência vertiginosa e bem-sucedida.
Numa subversão do formato clássico do stand-up comedy, quando um comediante sozinho no palco enfileira piadas inesperadas, Gadsby anuncia logo no início do show que, a fim de atender às expectativas, entregará ao público todos os segredos do roteiro de “Douglas”.
Dá-se, assim, a metalinguagem que é a chave do sucesso do segundo espetáculo de Gadsby disponibilizado na plataforma. O primeiro, “Nanette”, teve estreia mundial em junho de 2018, e focava um público que não necessariamente se repete agora.
Se antes eram a militância e a autocomiseração que seguravam de pé o roteiro, agora é a certeza de Gadbsy de seu talento quem faz esse papel. Confiar em si mesma e na sua escrita dão à comediante a liberdade de antecipar todos os "punchlines" sem correr qualquer risco e ganhar, ainda, risadas em dobro para cada um deles.
É o que ela chama de “camadas extras de riso”, conquistadas por meio desta manipulação da própria história. Passados os primeiros 14 minutos de show, o espectador já sabe, por exemplo, que, em algum momento, Gadbsy revelará que tem autismo, provocará os haters e promoverá uma “sessão de piadas”.
Nesta, inclusive, ela avisa que vai tirar onda de Louis C.K., 52, comediante que, em 2017, admitiu ter se masturbado na frente de cinco mulheres e se dizia arrependido. Em abril passado, no entanto, a revista Rolling Stone publicou uma reportagem em que fala que, três anos após a acusação, C.K. está de volta, e fazendo piada sobre o assunto.
Ela se diverte com regionalismos americanos (e, por isso é mais interessante, se possível, assistir com legendas originais, já que tradução para o português deixa a desejar), avacalha a história da arte, mistura anatomia com sapatos para cachorros, e, com elegância e pontaria, humilha o colega assediador.
Se é verdade que, como ela diz no show, seus haters a acusam de não ter graça nenhuma, resta ao espectador o alívio de, a exemplo de Gadsby, se saber inteligente o suficiente para rir no lugar e na hora certas —especialmente quando isso significa uma hora de diversão ininterrupta.
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