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Strip-tease com pegada feminista vira aposta de Hollywood em filmes e séries

'P-Valley' é mais um título que vai além da sensualidade para explorar as vidas de dançarinas noturnas

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P-Valley

Uma modelo faz pole dance no cartaz da nova série 'P-Valley', do serviço de streaming Starzplay Divulgação

São Paulo

A câmera mergulha num salão escuro com luzes néon. Homens rodeiam o palco e aguardam ansiosos. Eis que surge, grudada a um poste metálico, a imagem de Mercedes, uma stripper. Ela dança, rodopia e escala o mastro até o teto, sendo coberta por uma chuva —ou melhor, uma tempestade— de notas de dólar.

Aquela mesma Mercedes, noutra cena, está numa salinha. Ela faz uma dança sensual, até que o homem que a observa decide tocar seu corpo. Ela não hesita —pega uma garrafa à sua frente, a quebra na mesa e deixa bem claro que as mãos devem ficar onde ela possa ver. Aquilo não é bagunça, ela quer dizer, é um trabalho sério e digno.

A mensagem se aplica àquele personagem, mas também encontra ressonância na indústria do entretenimento como um todo. Ambientada no mundo das boates, a série “P-Valley”, que estreia agora no streaming Starzplay, tenta desconstruir a imagem ultrapassada das dançarinas hipersexualizadas, indefesas e sem qualquer relevância para além de seus corpos.

E não é preciso ir longe para notar que, nos últimos anos, algumas produções estão tentando descolar esse estigma do mundo das boates e do strip-tease. “As Golpistas”, de Lorene Scafaria, tentou fazer isso no ano passado, escalando Jennifer Lopez como sua estrela. Até mesmo “Magic Mike” ou “Chocolate City”, dessa vez com homens nos palcos, provaram que há muita história para contar por trás dos tanquinhos de quem trabalha nessa indústria.

“É isso que eu quero que as pessoas levem dessa série, que não devem julgar um livro pela capa. Imediatamente quando pensamos em strippers, achamos que eles estão lá para que as pessoas façam o que quiser com seus corpos, mas não é verdade”, diz Brandee Evans, a Mercedes de “P-Valley”.

“Com essa série, nós lutamos para que as pessoas vejam que há muito mais em nós do que nossos corpos ou o que fazemos no palco. O strip é uma arte, um tipo de performance. É como ir a um concerto —você assiste ao show e vai para casa, mas sozinho, não com o artista.”

Evans trabalhou duro para conseguir levar o strip e, mais especificamente, o pole dance para as telas. Além de visitar boates em Atlanta, Memphis e Los Angeles, passou por uma espécie de curso intensivo com uma dançarina.

Ela fez questão de atuar em praticamente todas as cenas, usando dublês só quando seus produtores não a deixavam recriar os passos mais ousados do pole dance, por questões de segurança. “Eu queria sentir a dor de uma queimadura nas coxas”, ela brinca.

Adaptação da peça “Pussy Valley”, da dramaturga e ativista americana Katori Hall, a série acompanha um grupo de dançarinas de uma boate de strip-tease no sul dos Estados Unidos. Para garantir que aquelas personagens não seriam hipersexualizadas pelas lentes, Hall, que atua como showrunner, escalou só mulheres para dirigir os oito episódios da temporada.

“Nós estamos mostrando as mulheres e falando sobre essa experiência das boates a partir de uma perspectiva feminina”, diz a dramaturga. “Eu penso em ‘P-Valley’ e ‘As Golpistas’ como irmãs, porque a coisa mais importante deles é que ambos vão para fora da boate e mostram a vida real dessas mulheres. Ambos têm esse objetivo de humanizar o que por tanto tempo foi desumanizado.”

E é por meio de um delicado equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho daquelas personagens que a série se abre para revelar dramas e histórias de superação. Mas, é claro, o glamour e a sensualidade intrínsecos a esse ofício não poderiam ficar de fora —só que, agora, eles são exaltados e usados como uma espécie de força
interna das dançarinas, não como motivo de vergonha.

Segundo a professora de cinema Giselle Gubernikoff, da Universidade de São Paulo, a indústria sempre negou a sexualidade da mulher, que precisou ser disfarçada por meio de fetiches que se adequassem a uma visão masculina. Quando essas personagens se entregam aos seus desejos, diz ela, é comum que acabem castigadas no final da trama. Mas não é isso que deve acontecer com Mercedes e suas colegas de trabalho.

“De certa forma existe, sim, um empoderamento hoje em dia, seja por meio da sexualidade ou não. A partir do momento que uma atriz de primeira linha faz um papel desses, o cinema está mostrando que agora tem um outro padrão de comportamento em relação a esse universo. A mulher está se posicionando hoje para não ser mais o personagem que os homens querem que ela seja”, diz.

Esse empoderamento reflete no mundo real. Envolto em preconceitos até pouco tempo atrás, o pole dance vem ganhando força enquanto modalidade esportiva e também como performance artística.

“Esse lance de objetificar a mulher é cultural. A gente vive numa sociedade patriarcal e isso vai acontecer”, diz Alessandra Rancan, pentacampeã nacional do chamado pole sport. “Mas o que eu acho bonito no pole dance é isso de a mulher se aceitar, de elevar a sua autoestima, porque vai contra essa corrente machista."

Rancan conta que há quatro vertentes do pole dance —o sport, que é modalidade esportiva, o artístico, mais coreografado, o exótico, que envolve o uso de salto alto, e, por fim, o sensual, mais conhecido do público e normalmente o que é retratado nas telas.

“Sempre vão existir pessoas com uma visão preconceituosa, que necessariamente relacionam o pole dance a algo imoral. Mas hoje, nos grandes centros, as mulheres o procuram pela sensualidade, para descobrir sua força, o que é maravilhoso”, acrescenta a treinadora Janiere Cunha.

Mas o mundo do strip-tease extrapola o universo feminino. O já lembrado filme “Magic Mike”, de Steven Soderbergh, foi elogiado há oito anos por mostrar justamente a complexidade de se trabalhar nas boates. À frente do elenco estava Channing Tatum, que foi stripper antes de estourar em Hollywood. No longa, o strip deixou de ser mera ferramenta de hipersexualização para, de certa forma, se tornar uma parte essencial da trama.

“Eu acho que nós já cansamos desse universo parecer tabu e fora dos limites”, diz Katori Hall. “E nós cansamos porque essa indústria existe, é muito lucrativa e várias pessoas alcançam autonomia financeira por causa dela, constroem carreiras inteiras nela.”

“Há algum tempo, o mainstream acabou se apropriando da cultura das boates, do pole dance à música, e eu acho que essa é uma razão para estarmos mais confortáveis com esse universo, levando ele mais a sério, porque é um trabalho como qualquer outro. Pode não ser o trabalho que você aspira, mas é algo que milhões de pessoas fazem diariamente —é uma indústria com um mecanismo muito forte. Então eu acho que, nesse sentido, a arte reflete a vida, e é por isso que agora vemos esse mundo ganhando espaço na TV e no cinema."

P-Valley

  • Quando Estreia neste domingo (12), na Starzplay
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