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Cinema

Chadwick Boseman se tornou menos negro ao se transformar em pantera?

Pessoas negras apresentam ao mundo uma magnífica coleção de atores, mas rararamente se impõem tanto quanto seria justo

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Fácil a vida dos negros nunca foi —no cinema ou fora dele. Fiquemos com o cinema, com o pioneiro Oscar Micheaux, cineasta com mais de 40 longas dirigidos entre 1919 e 1948. Sempre filmes baratíssimos, com vários atores amadores, sempre na base do “um por um” (isto é, sem segundo “take” para fazer correções), filmes rodados não raro com negativo vencido.

Os filmes de Micheaux estavam muito longe do sucesso a que chegou Chadwick Boseman na pele do “Pantera Negra”, ou seja, à condição de super-herói. Não se tratava mais de um evento quase clandestino, mas de um investimento pesado da indústria cultural. Não visava apenas o público negro —a significar uma mudança do mundo na percepção das pessoas ditas “de cor”.

Mudança simbólica, que se pode perceber também nos comerciais de TV como nos programas jornalísticos. Seria possível perguntar o que acharia Micheaux dessa transformação. “Pantera Negra” talvez indique mais a transformação do cinema hollywoodiano comercial, hoje dominado pela dupla Marvel e Disney, do que da sociedade em geral.

Micheaux aspirava captar entre outras os desatinos da comunidade, que no seu entender a rebaixavam. “Pantera Negra”, o nome já diz, trata da força do afro-americano.

Cena de "Corpo e Alma", dirigido pelo cineasta negro Oscar Micheaux, em 1925
Cena de "Corpo e Alma", dirigido pelo cineasta negro Oscar Micheaux, em 1925 - Divulgação

Os carros da Mercedes da Fórmula 1 agora são pretos, em homenagem a George Floyd, assassinado por asfixia por um policial branco no último mês de maio. As Mercedes ganharam o apelido de Pantera Negra, ganham corridas, mas nem por isso impediram que outro negro fosse baleado sete vezes pelas costas e, hospitalizado, permanecesse algemado.

A questão que “Pantera Negra” propõe não foi tanto a da competência dos atores negros do elenco, a começar por Boseman. Ela continua em aberto –quando os atos simbólicos, como os do cinema, do esporte, et cetera, poderão enfim afetar o dia a dia dos negros (os americanos, mas não só).

Os negros podem apresentar ao mundo uma magnífica coleção de atores e atrizes de primeira linha. Mas raramente eles se impõem tanto quanto seria justo. Sim, já temos uma atriz –Halle Berry– e atores –Sidney Poitier, Denzel Washington– a ganhar o Oscar de melhor ator.

Mas que dizer de Carl Franklin, diretor do magnífico “O Diabo Veste Azul”? Ou de Spike Lee, o raivoso, tantas vezes passado para trás? Ou de Jordan Peele? Os negros, é preciso convir, sempre estiveram na parte de trás do ônibus da indústria cultural.

Nisso não há grande diferença em relação ao dia a dia. Estrelas negras despontam hoje em vários setores, não só o do audiovisual. O caso mais significativo de preconceito talvez esteja na história que contou Michael Jordan sobre o garoto que veio pedir seu autógrafo e disse que não gostava de negros. Jordan objetou “mas eu sou negro”. “Não, você é Michael Jordan.”

A “celebridade” negra por qualquer razão é descolada de sua etnia ao se tornar célebre. Aos George Floyd resta o sufocamento.

Essa talvez seja a questão que convém formular no momento da perda prematura de Chadwick Boseman. Quem morreu de fato? O homem, o ator, ou aquele que, ao fazer o Pantera Negra, se tornou menos negro e mais pantera?

Ou por outra –Boseman merece toda a reverência que cerca sua morte. Mas, antes dele, são os muitos George Floyds que hoje ocupam a vanguarda na luta pela igualdade. As estrelas vêm atrás. Afinal, já faz 65 anos que Rosa Parks ousou sentar na parte da frente de um ônibus. Nem por isso os policiais deixaram de ter nos negros seu alvo preferencial. E a questão do racismo continua intacta —nos Estados Unidos, claro, mas, sabemos nós, não só lá.

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