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Entenda por que onda de demissões de estrelas da Globo muda totalmente a TV

Saída de Vera Fischer, Renato Aragão, Malu Mader e outros rompe com modelo da velha Hollywood e fortalece o streaming

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Vera Fischer em cena do filme

Vera Fischer em cena do filme "Eu Te Amo", de Arnaldo Jabor. Reprodução

São Paulo

Vera Fischer, Renato Aragão, Miguel Falabella e Malu Mader passaram tantos anos aparecendo na Globo –e só na Globo–, que a presença deles em outra emissora pode causar a sensação de sintonizar o canal errado. O caso é que eles já poderiam estar em outros canais ou serviços de streaming, sem que isso os impeça de voltar à Globo para fazer um ou outro trabalho.

Nesse sentido, “atriz global” vai virando uma alcunha rara. O número de contratos de longo prazo que dão à emissora exclusividade sobre profissionais, como no velho modelo de medalhões atrelados aos grandes estúdios de Hollywood, vem diminuindo nos últimos cinco anos.

É um reflexo da necessidade de investir mais no volume de produção e na variedade de temas, sotaques e cores, a fim de abastecer uma indústria de streaming para a qual os demais canais de TV brasileiros não acordaram.

Isso explica por que desde 2013, quando Carlos Henrique Schroder assumiu a direção-geral da casa, a Globo tenha iniciado um movimento de metas distintas para criação, produção e distribuição de conteúdo, setores que antes se confundiam.

Desse planejamento veio ainda o corte de cerca de 200 dos 1.400 contratos de longo prazo e o lançamento de 18 novos autores na dramaturgia. Atualmente, há 20 salas de roteiros em desenvolvimento.

Em tese, para o público, essa remodelagem no maior grupo de produção audiovisual do país é um bom negócio. Será mais difícil que se tropece de novo na escalação de um elenco de novela de cenário baiano em que 90% do elenco seja branco, como ocorreu há dois anos em “Segundo Sol”.

Essa ramificação é o propósito da emissora ao investir mais na variedade e na formação de novos atores e criadores do que na exclusividade de figuras que apareciam uma vez por ano na TV, como Renato Aragão.

Para além de boas intenções, a diversidade é ditada pelo consumo individual de conteúdo. Há cada vez mais gente vendo o que quer na própria tela, tendência que revelou um espectador mais exigente, que já não se contenta com a uniformidade de antes e quer se ver representado.

A Globo é a última remanescente desse modelo de contratos de exclusividade e garante que manterá um banco fixo do que internamente chama de talentos estratégicos, no momento, gente como Glória Pires, Tony Ramos, Adriana Esteves, Regina Casé, Lázaro Ramos, Taís Araújo, Fernanda Montenegro, Lima Duarte e Cauã Reymond, entre outros.

“Ao longo dos últimos anos, realizamos um profundo planejamento de renovação e qualificação dos nossos talentos. Pesquisamos novos profissionais em festivais, escolas de teatros e roteiros, cinema e em diversas regiões do Brasil”, informou a Globo em nota, reforçando seu investimento na formação de “autores, diretores e elenco”.

Produtora de elenco que em 2013 trabalhava na emissora e hoje atua como freelancer, inclusive para produções da Globo, Ciça Castello confirma ter testemunhado o momento em que a empresa anunciou o planejamento desenhado para os anos a seguir.

No ano passado, ao inaugurar o G4, complexo de novos estúdios da Globo no Rio de Janeiro, o presidente do grupo, Jorge Nóbrega, tratou nominalmente a Netflix como sua grande concorrente.

O gigante do streaming impôs à Globo uma competição consistente na disputa pela atenção do espectador, o que os demais canais nunca lhe trouxeram. Para abastecer um cardápio competitivo, era preciso ganhar antecedência nas produções, incluindo as novelas.

“Com menos atores à disposição é preciso iniciar com mais antecedência a escalação de um elenco. Vão ter que ver quem estará disponível ou não”, diz José de Abreu, que não teve contrato renovado e atualmente mora na Nova Zelândia.

“Eu mesmo já fui consultado para produções da Netflix e da Amazon. Tem muita coisa acontecendo. Esse é um momento de divisor de águas”, afirma. Abreu estava na Globo desde os anos 1980, com contratos de longo prazo ou por obra certa. Em 1990, processou a emissora ao ir para a extinta Manchete, em que fez “Pantanal”. Reivindicou direitos trabalhistas, fez acordo e voltou à Globo em 1993.

“Esse tipo de contrato com exclusividade só existe em Hollywood hoje”, diz Abreu, que acredita na completa extinção do banco de elenco fixo da Globo. “Como dizer que um Miguel Falabella não é um talento estratégico?”

Ele ressalta que foi muito bem tratado pela emissora ao deixar a casa. E reconhece que a situação do contrato longo acomoda o ator. “A gente fica meio preguiçoso, é bom que a gente busque outras coisas. Eu faço uma novela, passo um ano fora sem fazer porra nenhuma, recebendo salário –é cômodo, claro.”

Atores da Globo pagos por prazos longos são remunerados com vencimentos 40% menores quando não estão gravando, o que pode durar até três anos.

Abreu lembra ainda que “contrato por obra certa não implica reivindicação ou contestação por justa causa”. Juridicamente, é um modelo mais seguro para a empresa.

Se o modelo por obra certa alimenta a busca do ator por novos caminhos, também amplia a "uberização" de um setor historicamente marcado pela remuneração instável de seus profissionais. Em contrapartida, a chegada dos serviços de streaming abriu novas frentes de trabalho.

Contrato por obra certa pode trazer surpresas ao ator e ao contratante. Marcelo Médici, que já teve contratos longos e desde 2011 trabalha nesse regime, está escalado para a próxima temporada do “Vai que Cola”, no Multishow. A pandemia interrompeu a agenda de produção e, para manter o elenco já reservado, o canal talvez tenha de negociar garantias ou abrir mão das escalações.

Segundo Médici, as restrições impostas pelo modelo de contrato fixo tinham um custo alto. “Adoro fazer TV, mas o teatro para mim é fundamental, e nem sempre a gente conseguia conciliar esses interesses.”

Júlio Andrade, que por um bom tempo optou por não ter contrato fixo com a Globo, prezando a liberdade de escolha, transitou entre a Fox, em que protagonizou a série “Um Contra Todos”, e a Globo, que recentemente o convenceu a aderir ao elenco exclusivo. Uns saem, outros chegam.

Na contramão, Marco Pigossi e Bruno Gagliasso pediram para sair e foram parar na Netflix, em que o que vale também é contrato por obra.

“Minha saída da Globo após quase duas décadas não foi uma saída”, diz Gagliasso. “Sou um ator que criou maturidade na Globo. Sou grato. Mas por que não foi uma saída? Porque pode ser que um dia eu trabalhe lá de novo, são os novos tempos.”

Segundo ele, foi após o fim do acordo com a Globo que surgiram propostas da Netflix. “Não entro lá com um contrato fixo, entro com dois projetos assinados, exatamente o que queria. Imagine, quase 200 países poderão escolher assistir a uma obra de que participo ou produzo?”

Gagliasso adianta que fará uma produção nacional no serviço de streaming, assinando como produtor e ator, e estará em uma produção internacional como ator. “É um voo que me interessa. Estou respirando a liberdade ciente de que essas produções serão uma escolha do público.”

Outros casos de atores que recusaram contrato fixo com a Globo em troca da liberdade de escolha são Gabriel Leone e Mônica Iozzi, refazendo um caminho que num passado mais rarefeito de boas propostas foi trilhado por Sônia Braga, Rodrigo Santoro, Selton Mello e Wagner Moura.

Por fim, o movimento de menos rigor sobre contratos exclusivos da Globo é comemorado por produtores de elenco de outras emissoras, do streaming e do cinema. A HBO anunciou recentemente uma nova série com Pedro Cardoso, que era exclusivo da Globo até 2015.

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