Descrição de chapéu Artes Cênicas

Espectador vira personagem e dá as cartas da trama em peças de teatro virtuais

Plateia investiga assassinato e 'cancela' heróis de Shakespeare em montagens encenadas pelo Zoom e pelas redes sociais

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drag faz performance em palco redondo iluminado por luzes neon

O ator Gustavo Zanela em cena do espetáculo de teatro virtual 'Caso Cabaré Privê', do Núcleo Pequeno Ato Ana Alexandrino/Divulgação

São Paulo

Se quiser entrar na floresta sombria, vire a página. Se, ao contrário, decidir voltar para o chalé, volte duas páginas.

Quem cresceu nos anos 1980 e 1990 deve se lembrar das ordens que concluíam os capítulos da série "Enrola e Desenrola", da Ediouro. Chamados de livros-jogos, esses parentes do RPG —jogos de interpretação, em inglês— transformavam o leitor no dono da história, suas escolhas traçando os caminhos da narrativa.

Agora uma série de espetáculos virtuais parece ter resgatado o formato, na pandemia. Usando ferramentas como o Zoom e as redes sociais, são vários os que convidam o público a, mais do que assistir, dar as cartas da trama.

“Caso Cabaré Privê”, do Núcleo Pequeno Ato, pede à plateia que assuma a função de detetive e questione as testemunhas de um assassinato. “Clã_Destin@”, do Clowns de Shakespeare, convida os ditos passageiros a se disfarçarem com os apetrechos disponíveis em casa para embarcar rumo a um lugar desconhecido. “Parece Loucura, Mas Há Método”, da Armazém Companhia de Teatro, submete personagens de Shakespeare ao tribunal do cancelamento da internet —o espectador é o juiz.

seis bocas cobertas por máscaras de diferentes materiais, cada uma numa tela do zoom
Cena do espetáculo de teatro virtual 'Clã_Destin@', do Clowns de Shakespeare, em que espectador vira personagem de uma aventura - Reprodução

Transformar essas montagens em jogos é, em parte, uma estratégia para lidar com o meio virtual, afirmam os diretores dos dois últimos títulos.

De um lado, diz Fernando Yamamoto, de “Clã_Destin@”, ele e os atores do grupo concluíram que seria difícil segurar a atenção do público só encenando uma peça para a câmera. Também sairiam perdendo se tentassem se aproximar do audiovisual, por falta de recursos e de conhecimento técnico.

De outro, era preciso usar os instrumentos desse ambiente online a favor do projeto, afirma Paulo de Moraes, de “Parece Loucura, Mas Há Método”.

No caso, a solução foi um instrumento específico —uma enquete anônima, em que o público, depois de assistir a batalhas de monólogos entre personagens, vota em qual deles continuará na disputa. “Não sei se isso funcionaria num palco. E era isso que buscávamos”, diz Moraes.

Sorteadas ao vivo por um mestre de cerimônias, as disputas acontecem, então, entre figuras como a mocinha Pórcia de “O Mercador de Veneza” e Iago, de “Otelo”. Ou o boêmio Falstaff, de “Henrique 4º”, e o rei Ricardo 2º da tragédia de mesmo nome.

Vale notar que a interação não é uma estratégia nova para essas companhias.

A Armazém, fundada em Londrina, no Paraná, ficou conhecida na cena teatral carioca por causa de uma montagem em que conduzia a plateia pelas mesmas experiências sensoriais que a Alice de Lewis Carroll, de beber um chá supostamente alucinógeno a ter a impressão de crescer ou encolher demais.

Pedro Granato, que dirige o “Caso Cabaré Privê”, já fez do teatro uma pista de dança em que elenco e público podiam trocar beijos, em “Fortes Batidas”, e obrigou a plateia a seguir os desmandos de um regime autoritário, em “Distopia Brasil”.

Granato, que planejava estrear também esta peça num teatro, afirma que, tanto no ambiente físico quanto no virtual, o segredo para esse tipo de espetáculo funcionar é deixar as regras do jogo claras para a plateia, e estar aberto às suas reações.

Do contrário, acrescenta, existe o risco de fazer algo em que a atuação do público não tem nenhuma consequência real. Ele dá como exemplo “Bandersnatch”, episódio interativo de “Black Mirror” em que muitas das escolhas não fazem diferença para os rumos da história, como o cereal que o espectador prefere. A plataforma de streaming, aliás, lançou outra obra do tipo durante a quarentena, um especial de “Unbreakable Kimmy Schmidt”.

Yamamoto, de “Clã_Destin@”, concorda. “Metade da responsabilidade está na mão do público. Se a pessoa não quiser entrar no jogo, a coisa não acontece.”

Em “Caso Cabaré Privê”, musical com trilha sonora sertaneja e brega com um forte componente político —não à toa, o assassinato a ser solucionado é o do filho do presidente—, a plateia não só precisa se engajar na investigação como trabalhar em equipe. Ao final, todos votam, e as escolhas feitas ali reverberam numa realidade que, mesmo ficcional, lembra muito a do Brasil de hoje.

Questionado sobre o motivo deste chamado à ação, Granato resgata uma anedota de Augusto Boal. O criador do chamado teatro do oprimido uma vez encenou um texto político clássico, daqueles dados às lições de moral, ao Movimento dos Sem Terra. Quando caíram as cortinas, a entusiasmada plateia de ativistas tratou de distribuir armas a um elenco completamente desnorteado.

“Isso gerou uma crise nele. Que revolução era aquela que ele propunha?”, conta Granato. “É aí que ele vai construir a ideia de que o espectador também é autor da obra, que pode interferir na cena. A provocação para a plateia sair de um lugar passivo é também para que o cidadão saia dessa posição.”

Ainda um outro espetáculo virtual leva esse tipo de participação do público ao limite. Em “t01err1t0r10”, cada um dos performers, Joana Castro, Manuela Llerena, Matheus Macena e Xád Sassará, elege algum dos quatro espectadores da sessão a quem se dirigir, adotando inclusive o nome dele na tela.

O que começa com uma série de perguntas inocentes, como qual deve ser a cor de uma roupa, aos poucos se torna um experimento que beira o sadismo, com o participante tendo de escolher se o performer deve se jogar na piscina gelada ou correr o risco de se ferir com uma faca.

Num momento como o da quarentena, em que o sentimento de impotência diante do caos lá fora impera, poder dar as cartas —mesmo que na ficção— tem lá sua catarse.

Caso Cabaré Privê

  • Quando Sábados, às 21h, e domingos, às 20h. Até 20/9
  • Onde Zoom
  • Preço A partir de R$ 22,50
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Andressa Lelli, Bella Rodrigues, Bruna Martins e outros
  • Direção Pedro Granato
  • Link: https://www.sympla.com.br/pequenoato

Clã_Destin@

  • Quando Quintas e sextas, às 18h, 19h30 e 21h. Até 28/8
  • Onde No Instagram @teatroclowns
  • Preço R$ 25
  • Classificação Livre
  • Elenco Camille Carvalho, Diogo Spinelli, Dudu Galvão e outros
  • Direção Fernando Yamamoto

Parece Loucura Mas Há Método

  • Quando Sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 18h
  • Onde Zoom
  • Preço A partir de R$ 12,50
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Charles Fricks, Isabel Pacheco, Jopa Moraes e outros
  • Direção Paulo de Moraes
  • Link: https://www.sympla.com.br/armazemciadeteatro

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