Bienal de Berlim apresenta obras de artistas 'loucos' e questiona papel do museu

Mostra na capital alemã é maior evento presencial de arte em ano de pandemia

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São Paulo

No início da década de 1930, o artista Flávio de Carvalho se misturou a uma procissão de Corpus Christi no centro de São Paulo e andou no sentido contrário ao dos fiéis. Ele usava chapéu, considerado um ato de desrespeito segundo a tradição católica. Os crentes ficaram furiosos e partiram para seu linchamento. Diz a história que Carvalho se salvou fugindo para uma leiteria, sendo resgatado pela polícia logo em seguida.

Naquele mesmo período, o modernista organizou, junto ao psiquiatra Osório Cesar, uma exposição na capital paulista que reconhecia o valor da produção expressiva dos loucos e dos rabiscos das crianças. A mostra no Clube dos Artistas Modernos apresentava trabalhos plásticos dos pacientes do hospital psiquiátrico de Franco da Rocha e desenhos infantis de alunos de escolas públicas de São Paulo, e era complementada por palestras de médicos e intelectuais.

Obra de 2018 da artista filipina Brenda Fajardo, em exposição na Bienal de Berlim - Brenda V. Fajardo / Tin-aw Art Management, Inc.

Noventa anos mais tarde, a 11ª Bienal de Berlim —que abriu sua mostra principal na capital alemã no início de setembro— resgata as atitudes transgressoras de Carvalho para apresentar uma série de trabalhos de pacientes de instituições psiquiátricas, um dos núcleos do evento. São obras que “entram como força solidária e de resistência, com valores que poderiam servir de frente a essa onda de discursos de ódio que a gente está vivendo”, diz a curadora Lisette Lagnado.

Estão expostas uma série de telas de pacientes do psiquiatra amigo de Carvalho e também de internos cuidados pela médica Nise da Silveira, que organizava oficinas de pintura e escultura no hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Em um óleo com diversos tons de verde, por exemplo, Adelina Gomes —que recebera o diagnóstico de psicose— desenhou a si mesma se transformando em uma flor. Carlos Petrius, do mesmo hospital, participa com uma obra onde se vê uma figura feminina dando de mamar a uma criança, em uma estética que alude a desenhos infantis.

Na chave da loucura, há ainda uma representação chilena. Óscar Morales, treinado em mecânica e elétrica e tendo recebido um diagnóstico de esquizofrenia quando jovem, participa com uma série de telas criadas durante o período em que esteve internado em uma instituição de Santiago. Suas pinturas supercoloridas, feitas com têmpera e canetinha, misturam representações de circuitos elétricos, alienígenas, câmeras de vídeo e ursinhos de pelúcia.

A mostra, contudo, não se restringe aos trabalhos feitos por artistas de imaginário "virgem", nas palavras do crítico Mário Pedrosa —uma ideia um tanto comum no circuito, como atestam, por exemplo, as diversas mostras produzidas sobre Arthur Bispo do Rosário na última década. A exposição em Berlim também se vale do ato de andar em sentido contrário de Flávio de Carvalho e o desdobra de duas maneiras.

A primeira é metafórica, fazendo uma crítica aos museus tradicionais em uma mostra chamada “O Museu Invertido”, no prédio da Gropius Bau. A expografia foi desenhada de tal modo que o visitante entra pela porta de trás, em uma alusão a algo que vai contra as normas, “como uma pessoa louca”, define Agustín Pérez Rubio, outro dos curadores.

A segunda é literal, pela comissão de uma performance que levou mais de cem carros a trafegar em marcha a ré na avenida Paulista, em São Paulo, em alusão a um país que vai para trás, segundo os organizadores. O misto de evento artístico e protesto contra o governo de Jair Bolsonaro foi criado pelo grupo paulistano Teatro da Vertigem em parceria com o artista plástico e escritor Nuno Ramos, um dos nomes mais importantes do cenário contemporâneo brasileiro.

A ideia inicial do Vertigem era realizar uma performance em torno de uma unidade da Igreja Universal em Berlim, no que seria a ação de abertura do evento, mas a impossibilidade de viajar devido à pandemia forçou os artistas a mudarem os planos. O evento na Paulista virou um filme de dez minutos feito pelo cineasta Eryk Rocha, que está em exposição no KW, um instituto para a arte contemporânea.

Batizada “The Crack Begins Within”, ou a fissura começa por dentro, esta é a parte final da bienal alemã, epílogo de um processo que começou em setembro do ano passado no ExRotaPrint, um parque gráfico ocupado por iniciativas criativas no bairro de Wedding. A mostra segue até 1º de novembro, com trabalhos de cerca de 60 artistas espalhados por quatro espaços de Berlim.

É a maior seleção de realizadores brasileiros na história da mostra, que este ano privilegiou artistas ao sul do planeta, muitas das quais mulheres. Há representantes da Argentina, do Peru, da Guatemala, da Colômbia, da Turquia, das Filipinas e descendentes de mapuches (indígenas da região central do Chile), no que é um retrato das pesquisas dos curadores. Além de Pérez Rubio, espanhol, e de Lagnado, brasileira, o time conta com a chilena María Berríos e a argentina Renata Cervetto.

Pérez Rubio se diz surpreso com o alto número de visitantes do evento, provavelmente a maior mostra presencial de arte em um ano de pandemia. Mas ele reconhece que a Bienal —adiada com a anuência dos artistas e finalmente aberta com duração encurtada de três meses e meio para dois— acabou se tornando praticamente exclusiva para a cidade de Berlim e para quem mora nos arredores.

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