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Danças extraordinárias tomam conta de Granada, apesar de pandemia

Bailarinos levam coreografias brilhantes a palco de festival espanhol após meses de isolamento social

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Cristina Casa e Toby William Mallitt dançam no Teatro Generalife em Granada, na Espanha, em 21.jul.2020

Cristina Casa e Toby William Mallitt dançam no Teatro Generalife em Granada, na Espanha, em 21.jul.2020 Laura Leon / The New York Times

Marina Harss
The New York Times

Quando a Companhia Nacional de Dança da Espanha subiu ao palco do Festival Internacional de Música e Dança de Granada, no sul da Espanha, em 22 de julho, o que aconteceu foi de muitas maneiras uma apresentação como qualquer outra. Um casal executou um comovente pas de deux de Bournonville e um conjunto de 21 bailarinos usando trajes largos, em cinza pálido, estreou uma nova coreografia com uma música de Juan Crisóstomo Arriaga, prodígio da música espanhola do século 19.

Mas o fato de a apresentação de dança ter ocorrido em meio a uma pandemia, num país que sofreu —e continua a sofrer— muito com os efeitos da Covid-19, tornou a situação extraordinária. Foi a culminação de meses de planejamento cuidadoso, que envolveu o desenvolvimento de protocolos, exames de saúde e um retorno cauteloso e minuciosamente orquestrado nos estúdios de ensaio.

Todas as apresentações do festival, que acontece anualmente, foram realizadas ao ar livre, uma delas em um pátio no complexo de Alhambra, e os espectadores tinham que usar máscaras. A capacidade de público dos espaços foi reduzida em 50%.

No entanto, será que o retorno aconteceu cedo demais? Nos dias que antecederam a apresentação da companhia, novos avanços da doença começaram a ameaçar a reabertura do país e o futuro de eventos desse tipo. “Não tivemos qualquer problema aqui em Granada”, havia dito Antonio Moral, diretor do festival, encerrado em 26 de julho. “Até agora os problemas aconteceram na Catalunha e em Aragão”, completou —regiões no norte do país, a centenas de quilômetros de distância.

O maestro e pianista Daniel Barenboim, cujo show consistiu exclusivamente de composições de Beethoven, declarou à imprensa espanhola que o evento, um dos primeiros a acontecer neste verão do hemisfério norte, havia sido “um milagre".

“Estou numa nuvem de emoções”, disse Joaquin de Luz, diretor da Compañía Nacional, na manhã seguinte à apresentação. “Estamos seguindo em frente, cuidadosamente, com respeito, mas sem medo.”

Para a ocasião, Luz voltou ao palco com o meditativo solo “A Suite of Dances”, de Jerome Robbins. Em 2018, essa coreografia foi parte de sua apresentação de despedida do Balé de Nova York, no qual dançou por 15 anos. Luz diz que, após o longo lockdown, quis estar na companhia dos seus bailarinos.

Mas foi estranho dançar depois de meses de atividade limitada. “Havia tantas coisas a ajustar, todas ao mesmo tempo”, disse Kayoko Everhart, que há 16 anos é membro do grupo. “O palco um pouco áspero, as luzes de cena, a variação de tempo da música ao vivo. Perdi o costume.”

Alguns meses atrás, apresentações como essa seriam impensáveis. A Espanha, que está entre os países europeus mais atingidos pela doença, declarou estado de emergência na metade de março. Mais de 250 mil pessoas foram infectadas e mais de 28 mil morreram antes que o estado de emergência fosse suspenso, em 22 de junho.

Durante esse período, cada bailarino da companhia recebeu em casa um quadrado de piso de vinil para que pudesse ensaiar com segurança, e o grupo fazia lições diárias pelo Zoom. Os bailarinos também continuaram a receber salários integrais, graças a um auxílio estatal. Esse apoio estável contrasta com a situação dos Estados Unidos, onde as companhias de dança, de grande e pequeno porte, estão lutando para manter a solvência até que possam retornar ao palco.

Mas, como todos os bailarinos do mundo, os integrantes da Compañía Nacional de Danza, que tem a sua sede em Madri, descobriram que a novidade de dançar em suas cozinhas, cercados de filhos e animais de estimação, perdeu rapidamente a graça.

“Com a passagem dos dias, encontrar motivação foi se tornando difícil”, disse Everhart. “Decidi me concentrar em coisas que realmente não queria perder, como minha força abdominal e a musculatura glútea e dos tornozelos.”

Luz começou a fazer planos para um retorno aos ensaios formais na metade de abril, quando surgiram as primeiras informações de que o retorno dos times de futebol aos treinos poderia ser autorizado em breve. “Na Espanha, o futebol sempre puxa a fila”, disse ele. Lionel Messi e seus companheiros do Barcelona voltaram aos treinos no começo de maio.

Por volta da segunda semana de maio, Luz e Marisol Pérez García, a diretora executiva da companhia, prepararam um protocolo de segurança detalhado para o grupo, levando em conta a orientação das autoridades de saúde e lidando com as necessidades específicas dos bailarinos –aulas diárias, ensaios, camarins, parcerias e, por fim, apresentações ao vivo.

Em 1º de junho, enquanto a Espanha observava dez dias de luto oficial pelas vítimas do coronavírus, os bailarinos voltaram aos estúdios de ensaio perto do Matadero, o velho abatedouro de Madri, hoje transformado em centro cultural.

As medidas de segurança foram rigorosas. Máscaras precisaram ser usadas em todas as áreas exceto os estúdios de dança —e mesmo dentro deles, sempre que os ensaios forçavam os bailarinos a se aproximar a menos de dois metros uns dos outros.

As aulas de balé foram divididas em grupos de 14 estudantes para que os participantes pudessem se manter suficientemente separados nas barras, dentro dos dois grandes e bem ventilados estúdios da companhia. Todos os objetos pessoais tinham de ser armazenados em sacolas de tecido que os bailarinos carregavam com eles.

“Foi um tanto incômodo”, disse Everhart. “Parecia que havia cem pequenas regras, tudo o que devíamos e não devíamos fazer.” Mas com o tempo elas se tornaram rotina.

“Você sabe. Tirar a máscara. Lavar as mãos. Usar uma pinça para colocar uma nova”. A coisa mais difícil, ela disse, era não estar autorizada a usar os chuveiros no final do dia de trabalho.

Por semanas, os bailarinos não tocaram uns nos outros. Ensaiaram todas as cenas, exceto aquelas que exigiam emparceiramento.

O ponto de inflexão veio na metade de julho, quando os 52 bailarinos da companhia passaram por exames médicos e receberam um atestado de saúde. Com isso, tiveram licença para tocar nos colegas sem máscaras, o que tornou possível as duplas. “Foi só no meu primeiro ensaio de pas de deux que percebi o quanto tinha sentido falta daquele aspecto do meu trabalho”, disse Everhart.

Em 20 de julho, ainda que já estivesse surgindo um novo avanço no número de casos do coronavírus, especialmente no norte da Espanha, os bailarinos viajaram de ônibus a Granada, na Andaluzia, sul do país. Todos viajaram mascarados. Era um dia de calor escaldante e o motor do ônibus ferveu. Foi preciso parar e deixar que ele esfriasse antes que a viagem pudesse ser concluída.

Na apresentação, quase todos os 800 lugares disponíveis no teatro do Jardines del Generalife, um jardim mourisco com vista generosa para a Alhambra e o restante da cidade, estavam ocupados.

Durante o dia, o calor foi brutal, mas quando chegou a hora da apresentação a temperatura havia diminuído o suficiente para que o palco estivesse um pouco escorregadio por conta da condensação, contou Luz. (Mas nada que os bailarinos não conseguissem enfrentar.)

O diretor do festival, Moral, disse que cerca de 90% dos ingressos para as salas com capacidade reduzida haviam sido vendidos durante o festival, o que ele entendeu como validação de sua decisão de levar o evento adiante. Luz concorda. “Até onde sabemos, as apresentações não foram causa de contágio.”

E o evento de Granada não está sozinho. A Europa está reabrindo, cautelosamente. Salzburgo está realizando seu festival, com programação reduzida, e haverá uma série de concertos de ópera na Arena di Verona, na cidade italiana.

Luz diz que recebeu numerosas consultas de bailarinos americanos, entre os quais antigos colegas do Balé de Nova York, que procuravam desesperadamente por oportunidades de se apresentar. Para eles, o verão vem sendo desanimador, com o cancelamento de um festival de dança após o outro.

A companhia espanhola tem planos ambiciosos também para o quarto trimestre, entre os quais há uma apresentação no ambiente fechado do Teatro Real de Madri, em novembro, e uma nova versão de “Giselle”, com as cenas transferidas à Espanha do século 19, em dezembro.

É claro que, na era da Covid-19, a incerteza está incluída em todos os planos. “Ninguém sabe qual pode ser a situação em setembro”, disse Luz. “Mas me sinto verdadeiramente privilegiado por termos podido subir ao palco, especialmente porque sei o que os bailarinos de outros lugares estão passando.”

Tradução de Paulo Migliacci

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