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Gia Kourlas

Dançarinos celebram Martin Luther King com o belíssimo 'Sunshine'

Bailarinos de Nova York se apresentam pela primeira vez depois de meses isolados e causam encantamento

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Gia Kourlas
The New York Times

O primeiro espetáculo de dança ao vivo que eu ia ver desde meados de março era um que eu já havia visto muitas vezes antes, e isso não era bom presságio. “Sunshine”, trabalho bem reconhecido de Larry Keigwin ao som do clássico de Bill Withers “Ain’t No Sunshine”, pode dar a um bailarino a oportunidade de realmente sentir a música de todas as piores maneiras. É uma coisa altamente sentimental.

Então me alegro por dizer que, assim que Melvin Lawovi começou a dançar, senti um aperto no peito.

Cheguei a sentir algumas lágrimas aflorando —que horror. Ultimamente, em nome da autopreservação, ando tentando me convencer que posso viver sem assistir a dança ao vivo e, embora isso seja fato, está claro que sinto muita falta. Muita mesmo.

“Sunshine”, que abriu o Festival de Verão de Kaatsbaan, em Nova York, nos Estados Unidos, em agosto, sob céu azul belíssimo, funcionou muito bem.

Isso se deveu também a Lawovi, acréscimo recente ao American Ballet Theater, que não nos ofereceu um único momento "sentimentaloide" enquanto atravessava o palco com o toque mais leve ímaginável. Em vez de dar destaque à letra ou ceder à angústia existencial, ele dançou com esmero ímpar, como se seu corpo estivesse limpando o ar.

Mas os números habituais do repertório de companhias de dança não parecem ser o alfa e o ômega deste festival de verão, o primeiro de seu tipo promovido nos 30 anos de existência de Kaatsbaan como parque cultural.

Desde as apresentações até a instalação de som e luz de Brandon Stirling Baker num galpão rústico, passando pela paz gerada por você estar cercado de tanto espaço aberto e ar livre, o festival não se resume à dança ao vivo. É todo um pacote. Os melhores momentos coreográficos aconteceram quando os bailarinos atravessaram o gramado em direção ao palco, em caminhadas simples, mas cheias de graça.

A diretora artística do Kaatsbaan, Stella Abrera, e a diretora executiva, Sonja Kostich, não brincam em serviço quando se trata de zelar pela segurança dos presentes, e isso também foi tranquilizador nesse espetáculo socialmente distanciado. A experiência incluiu a obrigação de preencher a pesquisa de saúde no carro, pensando seriamente sobre as perguntas. Será que aquilo que senti hoje cedo foi um pouco de dor de garganta?

Adorei a firmeza elegante das placas escritas à mão nos orientando a usar máscara. O palco elevado aparentava ter caído do céu sobre um campo. E adorei a caminhada opcional pós-espetáculo no parque, originalmente uma fazenda, ao som de música ao vivo (em vez de uma palestra pós-espetáculo).

Homenageando o movimento Black Lives Matter, o festival teve a curadoria de três bailarinos negros respeitados –Calvin Royal, solista do Ballet Theater, que programou o primeiro fim de semana; Alicia Graf Mack, que lidera a divisão de dança da Juilliard School, e Lloyd Knight, da Martha Graham Dance Company.

Os números apresentados no primeiro momento foram curtos e despretensiosos —não era tão importante ver uma coreografia inovadora quanto assistir a corpos em movimento (os programas são curtos, de 20 a 30 minutos de duração, e incluem solos e duetos).

No início do solo de sapateado “Laying the Ground,” Leonardo Sandoval, acompanhado pelo baixista Greg Richardson, usou seu corpo como instrumento, contrastando toques suaves de seus pés com batidas leves sobre suas coxas e seu peito, enquanto caminhava até a plataforma de madeira do palco.

Seu sapateado era um sussurro musical, articulado, como se ele conseguisse de alguma maneira transmitir a ideia de estar deslizando logo acima dos próprios pés.

“The Dividing Line”, uma estreia de Calvin Royal com música de Gershwin, oscilou entre sensações distintas –imobilidade e alienação adjacentes eram vislumbres de esperança. Figura ao mesmo tempo introspectiva e heróica, Royal inicialmente ficou de costas para nós, suas mãos amarradas atrás, mas então as soltou de repente e atravessou o palco com passos velozes em marcha a ré.

A sensação de empurrar e puxar se manteve durante esse número, no qual Royal lançou seu corpo no espaço, com paradas e reinícios. A dança foi pessoal e poética, mas sua força poderia ter sido maior se determinados gestos —o esticar de um braço, um abaixar grave da cabeça— tivessem sido mais atenuados, mais acidentais.

O programa de 30 minutos terminou com outro solo de Royal, “The Dream Continues”, ao som de trechos do discurso “Eu Tenho um Sonho”, de Martin Luther King, dançado pela elegante Courtney Lavine, colega de Royal no Ballet Theater. Durante a transição entre solos, a voz de Royal foi ouvida recitando o poema “Harlem”, de Langston Hughes, enquanto se deslocava lentamente pelo palco. “O que acontece com um sonho adiado? Ele seca como uma uva passa ao sol?”

Ele desceu do palco, essencialmente entregando o espaço à Lavine —e às palavras de Martin Luther King, projetadas no ar com clareza extra. De collant roxo e saia que dançava em volta de seus joelhos, Lavine usou seus braços e sua expansividade para girar, aparentemente descontrolada, e então parar de repente, imóvel, conferindo beleza e amplitude à mensagem de King. Sua capacidade de se mover com clareza não foi prejudicada pela quarentena, mas, ao mesmo tempo, o importante não eram os passos –ela era um espírito, claramente dançando em nome de algo que a ultrapassava.

Tradução de Clara Allain

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