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Walter Salles

Ameaça à Cinemateca Brasileira sensibiliza até o diretor Martin Scorsese

Cineastas se preocupam com futuro de órgão brasileiro responsável pelo acervo audiovisual do país

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Walter Salles

Cineasta brasileiro, diretor de ‘Central do Brasil’, 'Diários de Motocicleta’, entre outros

Em 2011, a Federação Internacional de Arquivos Fílmicos, a Fiaf, considerou a Cinemateca Brasileira uma das três melhores do mundo. O Brasil passava a integrar o seleto grupo de países que melhor cuidavam de sua memória —e, por extensão, de sua identidade.

Em 27 de outubro, Dia Mundial da Memória Audiovisual, a Cinemateca Brasileira completou 300 dias de fechamento. A Associação Paulista de Cineastas e diversas organizações projetaram nas fachadas dos prédios vazios mensagens de solidariedade de diferentes cinematecas do mundo.

A elas se soma uma carta do cineasta Martin Scorsese, presidente da Film Foundation, instituição dedicada ao restauro de filmes do mundo inteiro, que reproduzo a seguir.

“Escrevo para manifestar minha preocupação com a Cinemateca Brasileira. Preocupação não é a palavra adequada. Trata-se de angústia e absoluta incredulidade. A possibilidade de que a maior coleção audiovisual da América Latina tenha sua verba suspensa em meio a uma pandemi é totalmente inconcebível”, ele escreveu.

“As artes não são um luxo —são uma necessidade, como bem o demonstra seu papel incontestável na história da humanidade. E a preservação das artes, especialmente de uma tão frágil quanto o cinema, é um trabalho difícil, mas essencial. Esta não é minha opinião. É um fato. Espero sinceramente que as autoridades federais do Brasil abandonem qualquer ideia de retirada do financiamento e façam o que precisa ser feito para proteger o acervo e a dedicada equipe da Cinemateca”, afirma Martin Scorsese.

Profundo conhecedor da cinematografia brasileira, admirador de “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, Scorsese apoiou o restauro de “Limite”, de Mário Peixoto, em conjunto com a Cinemateca Brasileira. Sua inquietação é compartilhada pelo mundo do cinema e da cultura, que acompanha nosso drama com preocupação crescente.

Sem entender o que é uma cinemateca, é difícil avaliar o que se perde com seu abandono. A maior parte da memória audiovisual brasileira, cerca de 45 mil títulos, está acondicionada lá. Os primeiros registros da paisagem física e humana do Brasil, de 1899. Os primeiros documentários que desvendaram a Amazônia, o Nordeste, o Sul do país. A expedição do Marechal Rondon, entre 1924 e 1932. A história de nosso futebol, registrada pelas câmeras do Canal 100. Os dribles de Garrincha. Os gols de Pelé. Os rostos dos torcedores no Maracanã.

A luta dos pracinhas contra o fascismo na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. A chegada triunfal da Seleção Campeã em 1958, e também em 1962. A campanha do tricampeonato em 1970. As comédias de Mazzaroppi, as chanchadas da Atlântida. “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, nossa Palma de Ouro em Cannes. A construção de Brasília. A luta por um país livre e independente, registrada pelo cinema novo. As primeiras imagens da TV brasileira. Os teleteatros, que deram régua e compasso para nossa teledramaturgia. O registro dos ciclos políticos do Brasil.

Pense em diferentes momentos da nossa história, a partir de 1900 —as imagens que os registraram estarão provavelmente resguardadas na Cinemateca Brasileira.

Criada há 74 anos pelo crítico Paulo Emilio Salles Gomes, a Cinemateca Brasileira sobreviveu a diferentes regimes políticos. Não pertenceu a nenhum deles. Pela simples razão de que ela não é de um governo, e sim do Estado brasileiro. Ela pertence a você, que está lendo este texto, e às gerações futuras do país —que poderão, graças a ela, saber de onde viemos, quem somos, e possivelmente quem poderemos ser, como nação.

Uma cinemateca tem três funções centrais. A primeira é a preservação dos milhares de rolos de filmes, que devem ser acondicionados em temperatura e umidade ideais. Parte dos negativos é de nitrato de celulose, material que pode entrar em autocombustão. É uma tarefa complexa, que requer um know-how ltamente especializado.

A segunda consiste no restauro e na digitalização do acervo —da recuperação das primeiras imagens de Brasília, passando pela digitalização de filmes com atores extraordinários como Grande Otelo e Oscarito, de filmes magistrais como “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos, a “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, de “Eles Não Usam Black-Tie”, de Leon Hirzman, a “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, é um Brasil amplo, polifônico, que está sendo preservado.

A terceira é a difusão de seu acervo e a criação de novas plateias. A Cinemateca Brasileira tem duas salas de projeção, sendo a maior uma das melhores do país. Sua ampla sede, num antigo matadouro na Vila Clementino, se presta a projeções ao ar livre para um grande público de festival.

A crise da cinemateca não vem de hoje. Em 2013, foi acirrada pela desastrosa intervenção da então ministra da Cultura, Marta Suplicy, com acusações até hoje não comprovadas. Durante o governo Temer, sua gestão foi entregue à Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, entidade que não tinha expertise para guiar instituição tão específica.

Em sua história, a Cinemateca Brasileira nunca esteve tão abandonada quanto no atual governo, marcado por um visível esforço para apagar nossa memória coletiva.

Nesta quarta, os funcionários da Cinemateca Brasileira receberão o Prêmio Humanidade da 44ª Mostra Internacional Cinema de São Paulo, que já coube a realizadores como Abbas Kiarostami, Agnès Varda e Wim Wenders. É um justo reconhecimento a quem deu sangue e suor para manter viva a entidade, mesmo com salários atrasados e parcas condições de trabalho.

A Secretaria Especial da Cultura promete um edital para selecionar o próximo gestor da Cinemateca. Que escolha uma instituição com legitimidade e conhecimento para a reconduzir ao posto de destaque que já teve. O tempo urge. Se algo vier a acontecer a seu acervo, será como perder nossa Biblioteca de Alexandria.

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