Bailarinas de Degas no Masp fogem da delicadeza e mostram sua face mais crua

Conjunto de 73 bronzes do impressionista francês ganha novas leituras ao ser retratado pela artista Sofia Borges

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fotografia do rosto da escultura de bronze 'A Pequena Bailarina de 14 anos', de Degas

'La Petite Danseuse 3', fotografia de Sofia Borges da série 'Ensaio para uma Escultura', de 2020, exibida na exposição 'Degas', no Masp Sofia Borges/Masp

São Paulo

Uma fotografia cobre, de fora a fora, a parede que abre a exposição do impressionista francês Edgar Degas em cartaz no Masp agora. Nela, uma menina aparece de olhos fechados, o rosto coberto de dourado. Sua expressão flutua entre a vulnerabilidade absoluta e a concentração de alguém que tenta, com todos os músculos do corpo, manter a mesma posição.

Quem vê a imagem talvez não perceba que ela pertence à escultura mais célebre de Degas, "Bailarina de 14 Anos", associada, como tantas outras obras do artista, à delicadeza, à feminilidade.

Mas o retrato cru, algo grotesco, que a artista Sofia Borges fez da escultura talvez seja mais fiel à realidade das bailarinas do século 19 do que aquela do nosso imaginário, diz Fernando Oliva, à frente da exposição ao lado de Adriano Pedrosa, o diretor artístico do museu.

Afinal, afirma Oliva, na época de Degas as bailarinas eram meninas pobres, muitas delas filhas de mães solteiras. Ficavam íntimas da dor desde cedo, entrando nas companhias aos seis anos de idade.

Pior, viviam num limiar perigosamente próximo da prostituição, uma vez que dependiam do patrocínio de frequentadores da Opéra para se manter. Historiadores suspeitam, inclusive, que este tenha sido o destino da modelo de "Bailarina de 14 Anos", Marie van Goethem.

escultura de menina dançando balé
Escultura 'Bailarina de 14 Anos', do impressionista francês Edgar Degas - Divulgação

Esse contexto fez com que a primeira exibição pública da escultura, num salão oficial em 1881, fosse desastrosa. Oliva diz que a opção de Degas por retratar uma menina pobre, da periferia parisiense, foi recebida com choque pelo público, aristocrata como ele.

O escândalo foi tal que Degas nunca mais expôs outra peça do tipo. Todas as outras 72 esculturas que compõem a mostra agora foram fundidas em bronze depois da sua morte, a partir de moldes de cera encontrados no seu ateliê.

As peças integram o acervo do Masp, todas compradas nos anos 1950. Só três outras instituições no mundo têm séries completas como esta —o D'Orsay, em Paris; o Metropolitan, em Nova York, e a Glyptoteket, em Copenhague.

Oliva afirma que a mostra, com outros dois trabalhos de tinta pastel e uma pintura do acervo, reuniria outras 14 telas a óleo do artista emprestadas por museus internacionais. Mas a pandemia impediu o trânsito delas.

Mesmo assim, o conjunto de esculturas, exposto pela última vez no museu há quase 15 anos, impressiona. Em bronze e medindo em média 50 centímetros, elas foram agrupadas em estantes de acordo com temas —há bailarinas rodopiando, cavalos trotando, mulheres lavando, passando, colhendo frutas e performando rituais de toalete que tinham acabado de surgir.

Oliva afirma que Degas era atraído por essas ações porque elas não só permitiam estudar o movimento, como também observar as mudanças sociais em curso na época, "mesmo que não fosse um ativista".

É esse olhar social sobre o impressionista francês, aliás, que o museu pretende lançar com a exposição de agora –em parte no catálogo, com lançamento em breve, que analisa aspectos controversos da produção do artista em geral negligenciados e em parte por meio das fotografias de Borges, exibidas nos cavaletes de vidro projetados por Lina Bo Bardi e intercaladas entre as estantes de esculturas.

Nelas, as bailarinas de Degas aparecem iluminadas por luzes duras —na realidade, as próprias lâmpadas do museu—, suas peles marcadas por sulcos. Algumas alongam braços, pernas, costas, seus pedestais de bronze cortados da composição de modo a "registrar sua potência dançante", segundo Borges. Já a "Bailarina de 14 Anos" aparece cercada de sombras e vultos, efeito dos reflexos no seu invólucro de vidro.

O interesse museológico de Borges, fotógrafa premiada e uma das curadoras-artistas da última Bienal de São Paulo, vem de longe. Por sete anos, ela explorou com suas lentes detalhes de pinturas, objetos arqueológicos, animais empalhados, buscando entender uma relação entre matéria, representação e imagem que, ela argumenta, é ainda mais complexa nessas instituições.

"Ali, um vaso representa o seu próprio tempo, o artista que o fez, a distância entre ele e o tempo de hoje, um povo inteiro. Ele parece ter uma espessura de significado diferente da de um vaso da minha casa."

Nos últimos tempos, porém, ela passou a nutrir um interesse pelo gesto —e, portanto, a dança.

Oliva, o curador, conta que percebia que Borges usava a câmera para olhar para os bronzes de Degas. A fotógrafa assente. "Não olho a coisa, mas a imagem da coisa."

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