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Roberto Zular e Álvaro Faleiros

Réplica: Coluna de Conti sobre Paul Valéry é resenha apressada

É difícil falar em sutilezas nestes tempos pandêmicos e polarizados, mas talvez elas sejam o que mais precisamos

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Álvaro Faleiros Roberto Zular

Foi com espanto que lemos o artigo sobre a primeira tradução integral de “Feitiços [Charmes]”, de Paul Valéry, publicado por Mario Sergio Conti na edição de 19 de dezembro desta Ilustrada.

Mas talvez ele seja sintomático de nossa época. Como dizia o poeta francês, hoje não inventaríamos algo como a poesia. Quando as palavras perdem o lastro e o culto à velocidade ganha primazia, parece restar tempo apenas para resenhas apressadas como a do articulista.

“Feitiços” foi escrito e publicado sobre as ruínas da Primeira Guerra. Mas sua estratégia, como bem viu Drummond, era escapar da espuma dos fatos, do imediatismo, e se deixar atravessar por múltiplas temporalidades.

O escritor francês Paul Valéry observa o porto de Marselha
O escritor francês Paul Valéry observa o porto de Marselha - Reprodução

Como mostramos detidamente no posfácio, os recursos poéticos são formas de habitar o tempo e adensar a linguagem e a história. Será que isso faz da poesia de Valéry, conforme Conti, a “delícia dos pedantes”? Se for o caso, a lista deve incluir “pedantes” como Mário de Andrade, Borges, João Cabral de Melo Neto, Octavio Paz, entre tantos outros leitores atentos de “Feitiços”.

Se há uma delícia na poesia de Valéry, essa é a delícia de morder o fruto da árvore do conhecimento. É o que vemos no poema “Esboço de Serpente”, por exemplo.

Trata-se de uma reescrita do mito do paraíso perdido, em que a fala sibilina do ofídio cria um ponto surdo na voz de Deus. A sedução aí se dá pela possibilidade de ouvir a própria voz, instaurando o lugar do desejo e do pensamento. Ainda que, como também nos alerta Freud, isso nos coloque diante da morte e da “estranha onipotência do nada”.

No “Esboço”, como em todo “Feitiços”, o pensamento não se separa dos atos e dos afetos, nem da experiência sensível e carnal. Tanto assim que traduzimos da forma mais neutra possível “Esboço de Serpente”, porque “serpent” é palavra do gênero masculino em francês. Mantivemos essa ambiguidade exatamente para acentuar as variações e as possibilidades transicionais.

O ponto é que essa cena de fala se revela quando articulada com os outros poemas. É preciso ler “Esboço de Serpente” e sua raiz judaico-cristã juntamente com “O Cemitério Marinho” e sua reflexão sobre como a morte tece a vida. O que se faz sentir no corpo de “A Pítia”, com a reinvenção do ritual délfico que ali se dá. E essa ressonância corporal do mundo grego continua na voz que fura as imagens em “Fragmentos do Narciso”. Passeamos entre mitos, corpo e mundo ao longo do livro.

Essa lógica das ressonâncias opera também no campo da retradução, prática comum em qualquer cultura que não se sinta tão periférica a ponto de achar que só há lugar para um único e exclusivo gesto tradutório.

Propor um projeto distinto daqueles realizados por poetas que admiramos, como Augusto de Campos —cuja tradução analisamos no posfácio e nos orgulhamos que ele tenha revisado dois dos poemas do livro—, não significa ser mais ou menos criativo.

A tradução poética não está condenada à alternativa infernal entre literalidade ou criatividade. O que procuramos fazer ao longo de “Feitiços” foi manter atuantes e sem hierarquia o maior número possível de fatores compositivos —do mito à história, da voz à semântica, da sintaxe às cenas de fala, da etimologia ao ritmo, da métrica às imagens, da dinâmica interna dos versos à correlação entre os poemas. Enfim, tentamos manter ao máximo todas as dimensões da hesitação prolongada entre o som e o sentido.

Por isso, para nós, não é pertinente dizer que Valéry é “melhor nas partes [...] que no conjunto”, pois o conjunto é parte do processo. E como Valéry interessava-se pelos processos de longa duração, nos cadernos, nos ensaios ou nos poemas, o que o movia eram as variações, as zonas de transição, as camadas mais sutis da experiência.

Sabemos que é difícil falar em transições e sutilezas nestes tempos pandêmicos e polarizados de hoje, mas talvez elas sejam o que mais precisamos. Ao menos é aí, para quem quiser de fato ler, que acontece o feitiço dos “Feitiços” de Paul Valéry.

Roberto Zular e Álvaro Faleiros são tradutores de "Feitiços [Charmes]", de Paul Valéry, publicado pela Iluminuras

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