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Saiba como 'orwelliano' virou um insulto universal e é usado por trumpistas

Senador republicano se inseriu na tradição de evocar o nome de Orwell como porrete em acertos de contas e para marcar pontos

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Jennifer Szalai
The New York Times

Depois dos acontecimentos da semana passada, somos obrigados a questionar se Josh Hawley –apesar de sua sofisticação toda conquistada em colégio de elite e universidade idem—tinha plena consciência do que estava fazendo.

Ao que parece, o senador republicano do Missouri achou que podia ter tudo: podia atrelar sua sorte à do presidente Donald Trump, tentar derrubar a eleição presidencial de novembro e mostrar que faz parte do povão de sua região, saudando com punho cerrado a turba que mais tarde invadiria o Capitólio –e, ao mesmo tempo, retratar-se como um “pensador muito sério”, alguém que escrevera um livro sobre a sabedoria de Teddy Roosevelt e estava prestes a publicar outro, este entitulado “The Tyranny of Big Tech”.

O que recebeu em vez disso foi principalmente a rejeição de seus pares no Congresso e o cancelamento do contrato de publicação de seu livro.

Incrédulo e indignado, Hawley foi ao Twitter para descrever a ação da editora do livro como “um ataque direto à Primeira Emenda” (que garante a liberdade de expressão). Quando apresentou alegações enganosas de fraude eleitoral, explicou, estava apenas fazendo seu dever, “liderando um debate no Senado sobre integridade do eleitor”. Insistiu que a editora estava se pautando pela “Esquerda” e tentando silenciá-lo: “Isto não poderia ser mais orwelliano”.

O escritor britânico George Orwell
O escritor britânico George Orwell - Reprodução

Na realidade, seria muito possível pensar em coisas “mais orwellianas” –incluindo o eufemismo insosso “integridade do eleitor”, mais frequentemente empregado para promover a causa da privação dos direitos de voto, não dos direitos do eleitor. (Poderíamos igualmente questionar se o fato de uma editora isolada rescindir um único contrato de publicação de livro equivale realmente ao que George Orwell descreveu em seu livro “1984” como “uma bota pisoteando um rosto humano –para sempre”.)

Mas Hawley estava se inserindo na longa tradição de evocar o nome de Orwell como porrete em acertos de contas e para marcar pontos. No dia seguinte, quando o Twitter suspendeu permanentemente a conta do presidente, o filho deste, Donald Trump Jr., anunciou (no Twitter) que “a livre expressão não existe mais na América” e disse que “estamos vivendo na 1984 de George Orwell”.

Enquanto isso, o romance “1984” –em que um regime totalitário reprime a dissidência por meio da violência e da perversão da linguagem—disparou para o primeiro lugar na lista dos livros mais vendidos da Amazon. Hawley pode ter pisado em falso na hora de lançar seu próprio livro, mas parece que ajudou a reforçar as vendas do livro de outro autor.

É uma ironia que talvez fosse apreciada por Orwell, sempre atento à discrepância contumaz entre a realidade e fantasias extravagantes. Ou então, quem sabe, ele teria se desesperado ao saber que seu último romance, publicado em 1949, menos de um ano antes de sua morte, se convertera em uma aquisição impulsiva (de leitores ansiosos) e uma arma (nas mãos de políticos cínicos).

As vendas de “1984” funcionam como barômetro do nível de preocupação nacional. Elas subiram fortemente em 2013, depois de Edward Snowden ter revelado ao mundo a abrangência enorme do Estado que espiona seus cidadãos, e novamente no início de 2017, quando Kellyanne Conway, então assessora de Trump, defendeu mentiras demonstráveis como tais, descrevendo-as como “fatos alternativos”.

Apesar de os críticos de Hawley terem argumentado que seu uso do termo “orwelliano” é em si algo orwelliano, há uma razão para supor que “orwelliano” tenha virado um epíteto universal, uma acusação que serve para tudo. Os americanos podem não estar de acordo sobre muitas coisas em 2021, mas todos concordam que o mundo retratado em “1984” é uma distopia –ou seja, é óbvia e indiscutivelmente tenebroso.

Ao longo de toda sua vida de escritor, Orwell se preocupou com a realidade consensual –sua necessidade e vulnerabilidade. Em “Homage to Catalonia” ele narrou sua experiência como voluntário nas forças antifranquistas na Guerra Civil Espanhola, testemunhando os republicanos devorarem os seus. A partir do momento em que sua visão compartilhada do mundo começou a se fragmentar, eles começaram a denunciar uns aos outros como mentirosos e traidores à causa. “Sob circunstâncias como essas não pode haver discussão”, escreveu Orwell. “Não é possível chegar ao mínimo necessário de acordo.”

Orwell foi colunista e resenhista de livros excepcionalmente prolífico, mas foram seus romances distópicos, “Revolução dos Bichos” e “1984”, que consolidaram seu legado cultural. De acordo com o “Oxford English Dictionary”, o termo “orwelliano” começou como descrição abreviada e espirituosa usada por críticos literários quando a escritora Mary McCarthy o empregou em um ensaio de 1950 para descrever uma revista de moda que não tinha “nenhum ponto de vista exceto a autodivulgação”.

Desde então o termo já foi usado para descrever fenômenos tão diversos quanto o jargão eufemístico da indústria nuclear, a retirada de tropas do Vietnã e um eletrodoméstico culinário dos anos 1960 que produzia café ou sopa a partir de misturas em pó.

Não é preciso ter lido “1984” para entender por que alguém está descrevendo alguma coisa como orwelliana, mesmo que você discorde da descrição. Mas alguém que não tenha lido o livro pode ser mais suscetível à manipulação do termo. Hawley, Trump Jr. e outros da direita usam “orwelliano” para se queixar da chamada cultura do cancelamento, mas “1984” não é tanto um tratado sobre o caráter absoluto da livre expressão quanto um aviso sobre os perigos da degradação da linguagem e a potência da propaganda política letal.

Mas mesmo essa não passa de uma descrição simplificada de um romance que é mais sofisticado do que a história moralista pesada que frequentemente é retratada como sendo. Em seu livro iluminador “The Ministry of Truth”, uma biografia de “1984” e sua influência, Dorian Lynskey argumenta persuasivamente que o romance é estruturado de uma maneira que intensifica sua ambiguidade. Sim, a força bruta do totalitarismo é um tema inescapável, mas a narração do romance –com seus textos no interior de textos—também encena sua própria fantasmagoria, um mundo onde ao mesmo tempo tudo é verdade e nada o é.

Lynskey diz que Orwell teria antecipado o que Hannah Arendt descreveria em “As Origens do Totalitarismo”, publicado um ano após a morte de Orwell: “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas a pessoa para quem a distinção entre fatos e ficção (ou seja, a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (ou seja, os padrões do pensamento) deixaram de existir”.

Mas as evocações periódicas de “orwelliano” geralmente guardam menos relação com aspectos específicos de um texto que com o brilho nobre do escritor –George Orwell como esquerdista leal que nunca se deixou seduzir pelos extremos de um lado ou de outro. Como diz Lynskey, “citar Orwell era arrogar-se um pouco do prestígio moral dele, merecidamente ou não”.

Em 2002 Christopher Hitchens escreveu um livrinho intitulado “Why Orwell Matters” em que elogiou a independência de pensamento de Orwell, deixando entender que ele próprio era seu herdeiro intelectual de direito. Um ano mais tarde, Hitchens aderiu ao coro em favor da invasão do Iraque –uma causa que apoiaria inabalavelmente até sua morte em 2011, mesmo depois de vir à tona que o pretexto declarado da guerra não passava de uma farsa.

Em “Politics and the English Language”, Orwell discutiu a praga das “metáforas moribundas” –as frases gastas que nos permitem pôr a boca no trombone sem prestar muita atenção. Os exemplos que deu incluíram “calcanhar de Aquiles”, “canto do cisne” e “hotbed” (algo como “incubadora”). Se tivesse vivido tempo suficiente, poderia ter acrescentado “orwelliano” à lista.

Tradução de Clara Allain

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