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Wole Soyinka, vencedor do Nobel, diz que fascista Trump deve ser banido da política

Primeiro negro a ganhar maior prêmio literário do mundo celebra que o Brasil esteja hoje mais próximo da África

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São Paulo

Ao aceitar o prêmio Nobel de literatura, em 1986, o escritor Wole Soyinka conclamou as pessoas daquele tempo a perceberem que eram filhas “de séculos de mentiras, distorção e oportunismo em altas posições, mesmo entre os santos mais sagrados da objetividade intelectual”.

Naquele momento, a luta contra o apartheid sul-africano estava num ápice, e a fala ressoava de forma poderosa. O nigeriano discursava como o primeiro negro da história a receber a maior distinção
literária do mundo
—só mais dois vieram depois dele, a americana Toni Morrison e o santa-lucense Derek Walcott.

Falando à herança racista que ainda perdurava, anacrônica, ele continuou. “Mas o mundo está crescendo, enquanto você deliberadamente continua uma criança teimosa e autodestrutiva, com certos poderes de destruição, mas ainda assim uma criança.”

Foram essas distorções e essa teimosia que mantiveram a maior parte da obra de Soyinka inédita no Brasil até hoje. Mas estamos crescendo.

wole soyinka
O escritor nigeriano Wole Soyinka, em foto de 1990, quatro anos após vencer o Nobel de literatura - Ulf Andersen/Aurimages/AFP

Isso se concretiza, curiosamente, com um olhar para a infância. A editora Kapulana, atenta às publicações que reforçam os laços do país com a sua ancestralidade africana, acaba de publicar “Aké”, o livro de memórias em que Soyinka relembra o seu tempo de menino na Nigéria.

A aproximação entre as culturas dos dois países é motivo de celebração para o escritor de 86 anos. “Uma enorme lacuna está se fechando”, afirma ele a este repórter. “E o Brasil está sendo trazido para mais perto de onde pertence.”

O porquê de “Aké” ser só o segundo livro dele publicado por aqui —o primeiro foi a fábula “O Leão e a Joia”, há nove anos— é mais uma pergunta a ser feita a editoras e instituições educacionais brasileiras do que a Soyinka.

Mas ele ressalva que o autor ainda tem alguma responsabilidade nisso, “especialmente um que considera o Brasil uma extensão do continente africano de tantas maneiras e que se relaciona com seu povo como um da família iorubá”.

De fato, em certa passagem de “Aké”, que foi escrito há 40 anos, o menino Wole comenta que o tempero peculiar da sopa de uma tia devia pertencer “ao lado brasileiro de alguns de nossos parentes afastados”.

O livro usa as observações cheias de inocência e perspicácia da criança, lembradas com um refinamento bastante adulto, para contar não só a história de sua vila, mas de uma Nigéria em profunda mutação nos anos 1930 e 1940.

Nisso se inclui uma crônica divertida sobre a chegada da luz elétrica à casa da família Soyinka, um passeio numa rua do centro da cidade que vendia o tradicional moin-moin nigeriano “ao lado de hambúrgueres do McDonald’s, KFC, cachorros-quentes” e o relato dos primeiros passos do movimento de mulheres local, puxado pela mãe do garoto, a quem ele só se refere como a “Cristã Impetuosa”.

O modo como Soyinka retrata a diversidade das religiões na época, aliás, demonstra sua abordagem das manifestações culturais como um todo —países com povos e costumes plurais, afirma o autor, têm que se orgulhar de poder contar com esse ativo.

Culturas são resilientes, continua ele, mas algumas figuras foram essenciais na luta para que não fossem apagadas ao longo da história. “Abdias do Nascimento foi um grande proponente do imperativo cultural na sociedade brasileira, de uma forma tal que a cultura virou uma ferramenta para combater o racismo.”

Nascimento e Soyinka compartilham a estima pelo teatro —a literatura do nigeriano se fundou, em boa parte, na dramaturgia. Mas o autor também tece em romances, contos e ensaios seus relatos preciosos de um período convulsivo para os países africanos no século 20, quando se modernizavam e buscavam se desgarrar da colonização.

A carga política de seu trabalho, que não foge à denúncia do autoritarismo e da corrupção, fez com que o governo militar que se instalou após a independência da Nigéria se voltasse contra o autor, o que rendeu a ele 22 meses como preso político nos anos 1960.

Foi só recentemente que ele baixou um pouco as armas na política, mas mesmo assim, ao ser questionado sobre isso, ele brinca —“a aposentadoria do ativismo sociopolítico é um dos objetivos de vida que eu ainda não alcancei”.

Tampouco largou de mão a literatura. A editora americana Pantheon anunciou que em setembro publica o primeiro romance do autor em 48 anos.

Com esse histórico, não surpreende que Soyinka se oponha a políticos como Donald Trump. Quando o americano foi eleito, ele prometeu que destruiria o green card que garantia sua permanência nos Estados Unidos, onde deu aulas em instituições de ponta.

“E foi o que eu fiz”, conta ele agora. “A campanha eleitoral de Trump foi brutal, xenofóbica e racista. Ele era um perigo para as pautas humanistas, um monstro fascista e um mentiroso compulsivo em assuntos banais e cruciais.”

“Sua resposta recente à derrota eleitoral está ameaçando afundar seu país no caos, ou mesmo numa possível guerra civil”, continua. “Ele merece ser julgado pelo crime de trair seu país e banido da vida política permanentemente.”

É tentador pensar no trumpismo como a última encarnação daquela criança teimosa e destrutiva em quem o Nobel passou um sabão no seu discurso. Mas podemos recorrer a outra criança —o Soyinka
faceiro de 80 anos atrás, bem vivo em “Aké”— para apressar o nosso amadurecimento.

Aké: Os Anos de Infância

  • Preço R$ 52,90 (264 págs.)
  • Autoria Wole Soyinka
  • Editora Kapulana
  • Tradução Carolina Kuhn Facchin
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