Filme em que Freud é personagem usa sonho como ferramenta da narrativa

"A Tabacaria", de Nikolaus Leytner, foi debatido no Ciclo de Cinema e Psicanálise nesta terça-feira (23)

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São Paulo

Em “A Tabacaria”, de Nikolaus Leytner, os sonhos são a principal ferramenta da narrativa. Eles revelam o mundo interior de Franz, jovem austríaco de 17 anos, e servem tanto como abrigo para as angústias e devaneios do protagonista, como também de expressão e resistência frente ao cenário autoritário de ascensão do nazismo nos anos 1930.

Essa foi uma das conclusões dos debatedores do Ciclo de Cinema e Psicanálise, realizado nesta terça-feira (23) pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com apoio da Folha e do MIS.

"Todas os personagens [do filme] têm suas vidas marcadas e determinadas pelo drama sociopolítico e econômico da época. Os sonhos são o que o indivíduo tem de mais autêntico”, afirmou a psicanalista Maria da Penha Lanzoni.

Em sua fala, ela citou o livro “Sonhos no Terceiro Reich”, da jornalista Charlotte Beradt, que reúne registros de sonhos de cidadãos alemães no início das mudanças do país. As entrevistas de Beradt aconteceram entre 1933 e 1939 e, para a psicanalista, elas mostram como os sonhos, de certa forma, antecipam acontecimentos e trabalham com a realidade emergente. “O indivíduo que sonha tenta tornar essa realidade mais familiar para que não ocorra uma ruptura psíquica e ele não venha a perder o equilíbrio mental. É um trabalho insano que o sonho tem que fazer para dar conta dessa anormalidade.”

No filme, após a morte do padrasto, o jovem Franz (Simon Morzé) se muda para Viena para trabalhar em uma tabacaria. Na capital, ele recebe instruções do dono do estabelecimento, Otto (Johannes Krisch), sobre como fazer a manutenção dos charutos e reconhecer os gostos de cada cliente. É também na cidade que ocorre a eclosão da sexualidade de Franz, que se apaixona pela primeira vez, e é a frustração nessa área que o faz se aproximar de um cliente recorrente: o psicanalista Sigmund Freud.

“A Tabacaria” é baseado no livro homônimo de Robert Seethaler e, segundo o crítico de cinema Cássio Starling Carlos, a adaptação é fiel ao formato de romance de formação, acompanhando o desenvolvimento do personagem, que começa o filme em uma fase infantil, apegado à mãe e à sua casa, e termina como um adulto, adquirindo autonomia e consciente de seus valores. "Esse arco dramático acompanha muito fielmente o conceito de romance de formação, que também será de destruição, de um conjunto de perdas."

Entre as perdas enumeradas pelos debatedores estão a desilusão amorosa do jovem, a transformação de Viena pela ocupação dos nazistas e o abandono dos personagens tutelares Otto, que será preso pela Gestapo, e Freud, que irá se exilar na Inglaterra.

"O filme é o contrário do que a gente está acostumado na tal jornada de herói, que vai se sobrepor à adversidade e encontra a redenção. Ele não tem um final como solução, mas como um problema maior. Não tem nada de ilusionista nesse processo narrativo", aponta o crítico.

Para a psicanalista Luciana Saddi, que fez a mediação do debate, o filme alerta para a fragilidade de momentos da vida marcados pela vitalidade e beleza, como a juventude. “É uma casquinha de ovo que pode ser destruída com muita facilidade. O amadurecimento do jovem Franz significa perceber exatamente isso: tudo pode ser destruído rapidamente, com muita violência.”

A afirmação de Saddi não se restringe apenas à instabilidade da vida e a maturidade que finda a juventude, mas ao cenário retratado no filme. "Viena presenteou o mundo com gênios da modernidade e, de uma forma surpreendente e muito triste, ela também é transformada no palco da vilania pusilânime criminosa do nazismo."

Ela ressalta que, para Freud, o homem não pode ser visto apenas como uma criatura gentil, que simplesmente reage quando sofre violência, mas como aquele que ataca.

Maria da Penha Lanzoni indica que, à medida que o filme avança, também ganham força preconceitos, perseguições e intolerâncias. Diante disso, Cássio Starling sugere que, ao analisar um filme histórico, é importante não se reter apenas ao passado, mas à forma como ele conversa com questões atuais. Filmado em 2018, o longa tem como pano de fundo temas como a xenofobia e o assédio sexual.

"[O filme] é um sintoma, tradução, metáfora, uma expressão enviesada de angústia e de questões que estão no presente. A gente supôs que esses traumas estavam enterrados com o fim da Segunda Guerra Mundial, mas estavam mal enterrados", diz Starling.

O debate pode ser conferido na íntegra no canal do MIS no Youtube​. O próximo Ciclo de Cinema e Psicanálise será no dia 9 de março, às 20h, e discutirá o filme "Crimes de Família", disponível na Netflix.

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