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Cinema

'Relatos do Mundo', com Tom Hanks, reinventa o faroeste cheio de horror

É como se os demônios da formação americana saltassem da tela, e os infalíveis pistoleiros de outrora tivessem desaparecido

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Relatos do Mundo

  • Quando Estreia nesta quarta (10)
  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Tom Hanks, Helena Zengel, Tom Astor
  • Produção Estados Unidos, 2020
  • Direção Paul Greengrass

Em “Relatos do Mundo”, temos um ator de primeira linha, Tom Hanks, como o Capitão Kidd, e uma novata, a jovem alemã Helena Zengel, como a menina Johanna. Um filme de dois atores, a rigor, fora comparsas e extras, que parece confirmar a tendência da Netflix de produzir ou distribuir filmes médios, nos quais o espectador não sente falta das dimensões de uma tela de cinema.

Impossível ser totalmente bem-sucedido, nesse sentido –“Relatos do Mundo” é um faroeste, e a paisagem é fundamental. Ainda assim, é possível ver nas telas de plasma na boa.

Estamos no pós-Guerra de Secessão e Kidd, ex-integrante do exército sulista, sobrevive graças à leitura, de cidade em cidade, das notícias de jornal que considera mais interessantes e divertidas, para ouvintes dispostos a pagar uma ninharia por seu simpático show.

Nisso aparece Johanna em sua vida. A existência da menina tem sido bem complexa. Teve seus pais mortos pelos índios kiowa, depois viveu entre eles, até que eles próprios fossem mortos por brancos. É duplamente órfã, constata Kidd.

O que se segue seria uma jornada tradicional de travessia do deserto (sempre no Texas), em busca dos parentes de Johanna e uma nova exploração do Velho Oeste, gênero por ora morto e enterrado.

O que faz a empreitada do diretor Paul Greengrass interessante, e até mais que isso, é que seu Oeste não se parece em nada com o que costumamos ver no faroeste americano. Lembra mais o árido Oeste de Sergio Leone. Se a determinação de Kidd em restituir a criança a seus parentes preserva esse lado de moralidade e de uma narrativa épica típicos do faroeste tradicional, os habitantes nos remetem a outras paragens.

É quase uma mistura de faroeste e terror o que Greengrass nos dá a ver, pois é como se os demônios da formação americana saltassem da tela. Os rancores da guerra civil, o extermínio indígena, os fantasmas da miséria do sul, trazendo consigo o comércio de pessoas, tomadas de terra, matança de animais, aprofundamento do racismo (no caso, ódio aos índios), desconfiança de todo forasteiro.

No mais, onde estão os infalíveis pistoleiros de outrora, que impunham a justiça ali onde tudo parecia caminhar para a injustiça? Desapareceram junto com o glamour. Em troca, há grosseria, aglomerações nas ruas, degenerados de várias espécies, tipos assustadores convivendo com outros, amedrontados.

É estranho, mas tudo isso soa familiar nessa revisão cruel da épica do Oeste. Parece muito com a experiência contemporânea, não só dos Estados Unidos –intolerante, violenta, ignorante e predatória. Não se mencionam “fake news”, é verdade, mas elas deviam correr a toda no Velho Oeste, onde os velhos jornais de Kidd trazem um pouco de verdade.

Nas águas turbulentas por onde transitam nossos heróis não falta nem mesmo uma magnífica tempestade de poeira, acontecendo no exato momento em que Kidd e Johanna começam a sucumbir à falta d’água. Como se já não vivessem outras privações, nossos heróis se veem, de repente, também sem horizonte. A cegueira os atinge, mas parece existir como condição mesmo da vida nesse Oeste.

Em poucas palavras, Paul Greengrass propõe aqui uma reinvenção do faroeste como mundo de almas perdidas, uma experiência de horror. É difícil que resgate esse gênero hoje morto e enterrado. Mas seu filme basta, se justifica por si.

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