Quem é o carioca que colore ruas de cidade em Israel com as suas criações vibrantes

Alander Especie chamou atenção da cena de arte local ao cobrir caixas de luz de grafismos e símbolos ancestrais

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Tel Aviv

Palavras em português com letras hebraicas, quase como um idioma próprio. Pinceladas fortes, grafismos, figuras, números e símbolos ancestrais em cores vibrantes. E um rosto abstrato quase onipresente.

Impossível não saber que uma obra é de autoria do artista plástico, designer e estilista carioca Alander Braz Especie, de 44 anos. As pistas de seu trabalho se espalham pelas ruas da cidade israelense de Raanana, a 20 minutos de carro da capital Tel Aviv e recentemente declarada “cidade-irmã” do Rio de Janeiro por sua crescente comunidade de imigrantes brasileiros.

Há três anos, Especie foi incumbido pela prefeitura de Raanana de transformar as caixas de luz da cidade em obras de arte. Até agora, já pintou 80 delas.

As intervenções urbanas, todas postadas no Instagram, abriram portas. Ele foi convidado para exposições e contatado pela plataforma israelense Space Art Gallery para vender 20 telas.

“Para mim tem sido ótimo, mas é um trabalho obsessivo. Cada armário de luz se tornou quase um bloco de esboços para as minhas pinturas”, conta o artista, que também participou recentemente de um museu “pop up” na cidade, onde pintou a sala de um apartamento de um prédio que seria demolido.

Mas o caminho de Alander Especie até a cena artística israelense com seus simbolismos e influências culturais foi tortuoso. Começou na favela de Vila Vintém, na zona oeste da capital fluminense, reduto de quadrilhas de tráfico de drogas e palco de conflitos entre milicianos e policiais. Foi lá que ele nasceu e morou até os cinco anos de idade, num barraco de madeira de 30 metros quadrados que alagava a cada temporal. A vivência deixou memórias e traumas.

“Me lembro de ver violência todos os dias, armas, facas. Tinha que pular e me desviar de corpos no chão e me esconder debaixo da cama quando tinha tiroteio”, diz Especie, que não é o único da família com nome criativo. Sua irmã mais nova se chama Rednala, Alander ao contrário.

Depois que a família se mudou para a Ilha do Governador, Especie cambaleou pelos anos de escola por causa de um não diagnosticado transtorno de déficit de atenção. Sem renunciar ao sonho de ter um diploma, decidiu estudar moda. Em 2001, se formou na Universidade Cândido Mendes e fez cursos de arte contemporânea na Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

Com os certificados, passou três anos lutando para se destacar como estilista, mas uma viagem para arejar a cabeça mudou tudo. Em Sana, na região serrana do Rio de Janeiro, local favorito de hippies e alternativos, conheceu quatro uruguaios que mudaram sua vida. Foram eles que ensinaram Especie a arte milenar do macramê, técnica de tecer com as mãos. Foi amor à primeira vista e a migração definitiva da moda para a arte.

homem de boné e óculos escuros sorri sentado em balanço de macramê
O artista plástico Alander Especie sentado sobre balanço de macramê que ele mesmo teceu pendurado em árvore da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro - Pedro Serra/Divulgação

“Na época, eu não pintava porque, além de não ter técnica, conhecimento ou talento, todos os meus amigos pintavam e eu sempre quis seguir um caminho diferente dos outros. O macramê me deu isso.”

Especie começou a envolver objetos com macramê e a criar pequenas esculturas. Uma das primeiras foi uma bala de revólver do pai, um policial, transformando um símbolo de morte numa espécie de ode à vida. Passou para objetos maiores, como árvores em locais públicos, convidando o público a interagir.

Em 2012, ele fez sua primeira exposição individual, no Museu Histórico Nacional, com a série “Herdeiro de Tradição" –cinco cadeiras em macramê, cada uma inspirada num artista brasileiro. Depois, participou de instalações e coletivos e ganhou prêmios. Mas a realidade dos artistas brasileiros era clara —em horário comercial, era vendedor de butique, e a arte ficava para as horas vagas.

A carreira de tecelão, no entanto, passou por uma transição quando ele se mudou para Israel, em 2016, com a mulher, Crystal, e dois filhos, Zion, de dez anos, e Noah, de cinco anos —a caçula Liz, de três anos, já nasceu no novo país. Ele havia conhecido a mulher, uma designer gráfica, na praia do Sono, em Paraty, no litoral fluminense. Ela era judia e ele, de família cristã conservadora.

“Ela viu a estrela de Davi que eu tenho tatuada no meu cotovelo direito, fruto da minha ligação com o movimento rastafári, com a história da rainha de Sabá e a tradição dos judeus etíopes. Sentimos uma ligação imediata”, conta Especie, que tem dezenas de tatuagens, entre elas três com os nomes dos filhos em hebraico.

O casamento levou a uma aproximação com o misticismo da cabala e a uma identificação com a história judaica. Isso e a insatisfação com os rumos do país natal levaram o casal, então, a se mudar para Israel, há cinco anos.

Especie diz se sentir em casa em Israel, onde 75% dos moradores são judeus. Ele aprendeu a falar hebraico fluentemente, frequenta uma sinagoga local e, há dois anos, põe diariamente o “tefilin”, par de caixinhas pretas atreladas a tiras de couro postas na testa e no braço esquerdo ao mesmo tempo em que se entoa a prece matinal. Mas não pensa em se converter ao judaísmo. “Não me importam rótulos ou o que os outros pensam. Vivo a minha espiritualidade da minha forma.”

A vida nova no país do Oriente Médio é, no entanto, um desafio. O lado artístico de Especie teve que ser congelado temporariamente nos primeiros anos de adaptação, quando ele trabalhou como cozinheiro e assistente de professor de jardim de infância.

Mas, aos poucos, o carioca se reinventou como artista plástico contemporâneo em Israel, dessa vez com a pintura. O primeiro empurrão foi em 2018, com uma exposição no Centro Cultural Brasileiro em Tel Aviv, ligado à embaixada do Brasil em Israel.

Apesar da fama crescente —sua próxima exposição deve ser no segundo semestre de 2021, na galeria Contemporary Corridor, em Tel Aviv—, nem sempre suas influências são compreendidas. Em Raanana, cidade de classe média alta sem grafites e pichações nas ruas, um grupo de judeus ultraortodoxos se assustou com alguns dos desenhos caóticos e com cores vibrantes nas caixas de energia.

“Acharam que tinha algo satânico”, diz Especie, rindo. “Tive que explicar que estava me apropriando do alfabeto hebraico e de números da escala Fibonacci para criar uma linguagem subjetiva.”

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