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Como escritores pagam as contas agora que a Covid pôs fim aos eventos literários?

Autores que sobreviviam de atividades relacionadas à escrita se reinventam com bate-papos e cursos online e até podcasts

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Santiago Nazarian

Escritor e tradutor, é autor de "Fé no Inferno" (Companhia das Letras)

São Paulo

Do que vive um escritor no Brasil? A pergunta sempre ecoou dentro do próprio meio literário, na curiosidade em saber como cada colega consegue manter o ofício e as contas em dia. Há quase sete anos, entrevistei 50 autores de diferentes percursos para uma reportagem que traçava fontes de renda dos escritores no país.

O saldo, ao meu ver, era positivo —mostrava que a maioria dos autores estabelecidos conseguia viver, se não da venda de seus livros, de atividades relacionadas à escrita, como oficinas literárias, jornalismo, roteiros e tradução. De lá para cá, a situação na cultura se deteriorou como um todo, e agora com a pandemia a pergunta volta com força. Do que estão vivendo nossos escritores?

O mercado de eventos literários —festivais, bienais, debates— se fortaleceu no início deste século, muito motivado pela Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. Muitos deles pagavam cachê e permitiam uma renda complementar aos autores, que discutiam ideias e debatiam seus conhecimentos com o público.

Isso já vinha se perdendo nos últimos anos –os cachês, que estacionavam numa média de R$ 2.000 por evento desde o começo do milênio, foram ficando cada vez mais raros, os eventos foram perdendo patrocínio e, claro, apoio estatal.

Era esperado que o escritor estivesse motivado apenas em divulgar sua obra. Com a pandemia, os eventos tiveram de migrar para o virtual —as conhecidas lives— e, nesse cenário, os cachês são raridade absoluta.

Afonso Borges, jornalista mineiro que há 35 anos promove eventos literários, como o Fliaraxá e o Sempre um Papo, foi um dos que conseguiram manter parte de sua programação com recursos já captados para as atividades presenciais, migrando para lives. “Eu nem saberia como captar patrocínio para um evento virtual. É sempre a perspectiva da volta presencial que sustenta o patrocínio.”

O pernambucano Marcelino Freire organiza desde 2006 a Balada Literária, que também teve de se tornar virtual. Nome forte nas oficinas literárias, está com quatro turmas online. “A vantagem é que tem gente de todo o Brasil fazendo os cursos, até de fora do país. Presencialmente não seria possível. Outra vantagem é que coordeno direto da minha casa, ao lado dos livros.”

Borges também vê ocasiões em que a ausência de deslocamento é positiva. “É lógico que um escritor de 80 anos vai se sentir mais à vontade falando de casa.”

Freire afirma que a renda tem se mantido e vem de maneira mais econômica. "A comida faço em casa, não pego avião, Uber, não uso hotel, não gasto sola de sapato.” Mas, segundo ele, não compensa o gasto com remédio, falta de exercícios, e “excesso de tristeza”.

Outra fonte de renda importante para os autores, que tinha ganho força na última década, era a escrita de roteiros para a TV. Com as produções paradas, roteiristas que não têm contrato fixo estão penando.

A paulistana Tati Bernardi, colunista deste jornal, sentiu o baque mesmo sendo contratada da Globo. Conseguiu se reinventar com o podcast Calcinha Larga e os cursos online. Segundo ela, sociofóbica confessa que não costumava ministrar oficinas presenciais, o formato virtual foi um incentivo. Suas turmas da oficina de autoficção Fale Mal, Mas Fale de Você estão lotadas.

Um relatório sobre o mercado de livros feito pela GfK para a Associação Nacional de Livrarias aponta que a venda de livros aumentou em cerca de 4% de 2019 para 2020, mas isso não chega a fazer diferença na renda dos autores.

E o acréscimo não se refletiu na literatura infantojuvenil, um campo no qual autores conseguiam formar sua renda principalmente por direitos autorais —não só por adoções e compras governamentais, mas porque publicavam num ritmo muito maior do que a ficção adulta, até pelo volume menor de texto de cada obra.

Entretanto, com as escolas fechadas, a divulgação e a adoção dos livros para jovens e crianças foi prejudicada. “Com as famílias em crise financeira, pedir livros de literatura, ou investimento em cultura de forma ampla, não está contemplado no contexto emergencial da escola online”, aponta Tiago de Melo Andrade, premiado autor mineiro do segmento, que costumava viajar o ano todo divulgando seus livros para as crianças.

O ofício da tradução, fonte de renda para muitos autores —como eu—, não foi especialmente impactado na pandemia. Amanda Orlando, editora da Globo Livros, aponta que num primeiro momento as editoras congelaram, mas com a percepção do aumento de vendas, as traduções voltaram a ser requisitadas “em um fluxo ainda maior do que em anos como 2019 e 2018”.

Mas Antônio Xerxenesky, autor gaúcho que também atua na tradução, faz uma ressalva importante. "A inflação brasileira não se refletiu em um aumento do valor da lauda de tradução", que permanece a mesma há meia dúzia de anos.

A impressão que fica é que os autores, como todos os brasileiros, estão se virando e se reinventando. Mas quem sempre perde é a literatura em si que, mesmo quando ganha em vendas, perde em relevância e incentivo para se fortalecer e refletir nossos tempos. Deve fazer parte do plano deste governo. Se é que há algum plano.

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