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Jornalista luta contra erosão da democracia filipina em filme do É Tudo Verdade

'Mil Cortes' segue passos de editora de site perseguido por governo e seus apoiadores

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São Paulo

“Estamos vendo nossa democracia sofrer uma morte por mil cortes. Pequenos cortes que estão fazendo sangrar o corpo político das Filipinas. Quando houver um número suficiente de cortes, a democracia estará tão fraca, que acabará morrendo.”

Com essa analogia sobre uma morte lenta e dolorosa, a jornalista filipina-americana Maria Ressa descreve a ascensão do autoritarismo nas Filipinas em cena captada do documentário “Mil Cortes" ("A Thousand Cuts"), da diretora Ramona S. Diaz, que pode ser visto online no festival É Tudo Verdade neste sábado (10).

Era fevereiro do ano passado e Ressa, editora do site Rappler, tinha acabado de ser presa, acusada de violar uma controversa legislação contra “difamação cibernética” por causa de uma reportagem em que acusava um empresário filipino de atividades ilegais.

O texto havia sido publicado seis meses antes de a lei entrar em vigor —mas a Justiça usou uma brecha legal. Como um erro de digitação foi corrigido depois, consideraram que o texto foi republicado.

Cena de 'Mil Cortes', de Ramona S. Diaz
Cena de 'Mil Cortes', de Ramona S. Diaz - Divulgação

A prisão de Ressa escancarou a perseguição da jornalista e do site Rappler pelo presidente filipino, Rodrigo Duterte, que costuma chamar a imprensa de “filhos da puta”, “fake news” e “espiões”. Focando na carismática e despretensiosa figura de Maria Ressa, o documentário de Diaz mostra a gradual erosão da democracia e as ameaças à liberdade de imprensa nas Filipinas desde que Duterte assumiu, em 2016.

A jornalista de 57 anos e o Rappler são especialmente indigestos para o presidente filipino. Eles vêm denunciando os abusos da “guerra às drogas”, principal bandeira do governo de Duterte, que resultou em mais de 12 mil mortes, muitas de usuários de substâncias ilícitas e pessoas sem nenhuma relação com o tráfico.

Ressa também revelou a máquina do ódio de Duterte. Segundo ela, o presidente filipino usava redes de contas falsas, militantes ou pessoas contratadas para fazerem ataques online coordenados contra jornalistas, opositores e defensores de direitos humanos, e fazer elogios ao governo.

Os ataques eram feitos via Facebook, que é a rede social mais usada pelos filipinos e equivale à própria internet, uma vez que o aplicativo vem pré-instalado nos celulares e pode ser usado de graça, sem consumo do pacote de dados.

O Facebook chegou a suspender 200 contas ligadas a Nic Gabunada, gerente de redes sociais da campanha presidencial de Duterte em 2016, por "atividade inautêntica coordenada”. Gabunada nega o uso de contas falsas, e afirma que se trata de movimento orgânico, de apoiadores reais do presidente.

(No Brasil, em julho de 2020, o Facebook removeu uma rede com 73 contas ligadas a integrantes do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e aliados que promoviam propagação de ódio e ataques políticos no Facebook e Instagram.)

As centenas de milhares de ofensas e ameaças online recebidas diariamente contra Ressa e jornalistas do Rappler, muitas instigadas por blogueiros e youtubers governistas, migraram para o mundo real. No filme, é possível ver apoiadores de Duterte fazendo protestos em frente ao escritório do Rappler, xingando e dizendo que não eram trolls, nem robôs. Maria e os jornalistas, a certa altura, tiveram de andar acompanhados de seguranças.

A jornalista filipina é alvo de ao menos dez ações judiciais do governo, acusada de sonegação de impostos, difamação online, violação de leis do mercado de capitais. Em junho de 2020, foi condenada no caso de difamação online, que prevê até seis anos de prisão, e está recorrendo em liberdade. Segundo a Human Rights Watch, a condenação foi “um golpe devastador contra a liberdade de imprensa no país”.

Ressa está proibida de sair do país. Já foi presa duas vezes, e pagou fiança outras sete. Mas não vai se calar.

“Ela vai lutar até o fim, vai continuar se manifestando, dizendo a verdade mesmo quando desagrada aos poderosos. Essa é a Maria”, afirma a diretora Ramona Diaz a este jornal.

Ou, como a própria Ressa diz a certa altura no filme, no mesmo discurso sobre a morte por mil cortes, “minha prisão não me afeta, só me deixa mais determinada, porque enxergo como a lei está sendo distorcida e violada. Nós, do Rappler, não vamos nos abaixar, não vamos nos esconder, nós vamos aguentar a barra. Juntem-se a nós”.

Um dos grandes acertos do filme é também acompanhar defensores do governo, sem demonizá-los de forma simplista. Mocha Uson é uma blogueira que ganha um cargo no palácio presidencial e defende Duterte com unhas e dentes. Seu blog, que alcança milhões de pessoas, é um dos que espalham desinformação contra jornalistas e opositores. Mas, no documentário, ela fala sobre a morte do pai, vítima de violência, e explica porque apoia o governo.

A cineasta mostra a campanha ao senado de Ronald Dela Rosa, o Bato, policial que era chefe da administração penitenciária e braço direito de Duterte (e se elegeria senador). Bato é retratado durante discurso motivacional para detentos em uma prisão, zombando de alguns que tinham os dentes e as gengivas estragadas por causa do uso de shabu (metanfetamina), e afirmando que iria agredir quem fosse pego usando drogas de novo.

“É muito importante ver o outro lado da história, o ponto de vista dos defensores do governo”, diz Diaz. “Eu não acho que eles acordam todos os dias e pensam –vou fazer maldades, ninguém é um anti-herói em sua própria história, e eu queria ver a versão deles, saber como eles veem o mundo.”

A diretora Ramona Diaz vive nos EUA, mas nasceu e cresceu nas Filipinas, durante a ditadura de Ferdinand Marcos. “Pensei que tínhamos superado tudo isso, que estávamos longe do autoritarismo, mas aí, em 2016, Duterte foi eleito.”

Diaz começou a filmar no início de 2018. No final daquele ano, Ressa foi eleita uma das pessoas do ano da Revista Time, por seu combate à desinformação, e foi alçada à fama mundial. Representou a luta pela verdade ao lado de jornalistas como o saudita Jamal Khashoggi, crítico da monarquia da Arábia Saudita que foi assassinato dentro do consulado saudita em Istambul.

“Chegamos até Maria antes do resto do mundo, antes de ela ficar famosa; foi um presente dos deuses dos documentários”, brinca Diaz.

A situação nas Filipinas piorou nos últimos meses, uma vez que a pandemia da covid-19 permitiu a Duterte concentrar ainda mais poder –o governo fechou a maior rede de TV do país, ABS CBN e sancionou uma nova lei antiterrorismo, que criminaliza críticos.

Nas eleições do ano que vem, Duterte está constitucionalmente barrado de tentar a reeleição. Mas sua filha, a prefeita de Davao, Sara Duterte, deve se candidatar. “Ela é durona como Duterte, só não tem a boca tão suja”, diz a diretora.

O documentário estreou no festival Sundance em janeiro de 2020 e, comercialmente, em agosto daquele ano. Nas Filipinas, está disponível gratuitamente.

“As pessoas nas Filipinas ficam tristes quando assistem ao documentário, e se perguntam o que aconteceu. Não tínhamos lutado pela democracia, como voltamos para uma ditadura? E eu respondo: tudo isso aconteceu bem na frente de todo mundo, nada estava escondido...”

Mil Cortes

  • Quando Sábado (10), às 17h
  • Onde Looke
  • Preço Grátis
  • Classificação 12 anos
  • Produção EUA, 2020
  • Direção Ramona S. Diaz
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