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Aline Bei faz da literatura um instrumento a serviço das mulheres

'Pequena Coreografia do Adeus' consolida características do elogiado 'O Peso do Pássaro Morto'

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Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

Pequena Coreografia do Adeus

  • Preço R$ 49,90 (264 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Aline Bei
  • Editora Companhia das Letras

Segundo livro de Aline Bei, "Pequena Coreografia do Adeus" consolida as características elogiadas em "O Peso do Pássaro Morto", seu livro de estreia, que rendeu a ela em 2018 o prêmio São Paulo de literatura na categoria estreante.

A primeira e mais evidente delas é o formato do texto –“formato” e não “forma”, porque é provavelmente do que se trata. A narrativa é organizada em linhas que se quebram como versos, não trabalhados, contudo, como tais.

A disposição da mancha do texto na página não mobiliza recursos como ritmo, metrificação e rima, antes parecendo imprimir certa qualidade ao discurso da narradora, como se a intenção fosse constantemente alertar o leitor para a importância do que é narrado.

Assim como acontecia no primeiro livro, aqui são retratados os sofrimentos a que é exposta a protagonista feminina. Júlia Terra, a narradora, é filha de Vera e Sérgio, casal já separado, cujas fragilidades emocionais a expõem à violência física, ao sentimento de abandono, à culpa, à frágil construção da autoestima.

A trama tem início em uma recordação da infância, quando a menina, brincando em uma praça, vê o pai, ainda casado, passar ao longe na companhia de outra mulher. Além de gerar o ressentimento que nutrirá pela figura paterna, o episódio esclarecerá certa dinâmica da transmissão da violência –“as surras que eu levava/ eram as surras que minha mãe levou”.

Retornando com alguma frequência, o ponto de vista infantil, ao mesmo tempo sincero e ingênuo, transmite a brutalidade da situação com alguma delicadeza. “Eu era o lugar onde as pessoas depositavam/ as suas variações de tristeza e raiva/ sem medo algum de depositar, já que eu aparentava a mais pura fragilidade, o rosto coberto pelo espanto de existir.”

Esse trecho mostra ainda como alguns recursos gráficos trabalham para intensificar a expressividade do texto —no caso, um “eu” subjetivamente diminuto, ainda sem condições de se afirmar.

O conflito com a mãe ocupa posição central na primeira metade do livro. Embora seja a principal geradora de sofrimento para a filha, Vera é ainda vista com alguma empatia. Júlia intui a origem de seu comportamento tirânico, mesmo antes de o poder compreender, e abre assim caminho para que o leitor procure fazer isso.

Nesse ponto está um dos interesses centrais da autora, que retrata as adversidades vividas por mulheres e as diferentes maneiras como as personagens souberam ou não se livrar da subjugação. Se aqui o laço entre mãe e filha permite vislumbrar o afeto e a solidariedade mesmo quando tudo aponta para o contrário, no livro de estreia a maternidade era o evento que reunia as diferentes opressões sofridas pela protagonista.

Júlia se diz “fruto de um amor devastado”, mas seu sobrenome é também indício de sua força. Prestando tributo a uma das personagens mais marcantes da literatura brasileira, Ana Terra, de Érico Veríssimo, ela encontrará em si a força de que precisa para se libertar da condição de abuso.

Outras personagens a ajudarão, é claro, mas o seu principal recurso será a escrita, vista no livro a partir do olhar singelo da jovem, que se entusiasma quando, lendo em voz alta trechos de seu diário no cemitério, sobre o túmulo de uma pessoa querida, é aplaudida por uma passante.

Apostando ao mesmo tempo na dimensão poética dos afetos e na recuperação de uma história feminina que encontra na sensibilidade e na ternura um caminho para enfrentar a opressão, Aline Bei se afirma em meio a uma geração de escritoras dedicadas a fazer da literatura um instrumento a serviço das mulheres.

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