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Naguib Mahfuz mergulha num Egito em que limite do bom senso não existe

Nobel de literatura confronta expectativas do leitor com um laconismo explícito em contos de 'O Sussurro das Estrelas'

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Vivien Lando

O Sussurro das Estrelas

  • Preço R$ 59,90 (109 págs.)
  • Autoria Naguib Mahfuz
  • Editora Carambaia
  • Tradução Pedro Martins Criado

Ao abrir a gaveta, a filha do escritor egípcio Naguib Mahfuz se deparou com 18 narrativas curtas, cuja data de origem era desconhecida, mas que continham uma instrução precisa —"a serem publicadas em 1994".

Corria 2018 e seu pai já havia morrido 12 anos antes. O enigma ficou por conta da indicação, pois 1994 foi justamente quando o autor, vencedor do prêmio Nobel de literatura de 1988, foi esfaqueado por um fanático por não ter repudiado "Os Versos Satânicos", de Salman Rushdie.

A sequela foi catástrófica, já que paralisou os movimentos de suas mãos, exigindo que um dos mais profícuos escritores das línguas árabes passasse a ditar seus textos.

Os contos que compõem "O Sussurro das Estrelas" —e que podem ter sido criados juntamente com os da coletânea "O Sussurro da Loucura", de 1938— nem podem levar esse rótulo. Pois se a técnica do conto estabelece paradigmas precisos, como uma reviravolta, revelação ou surpresa final, os escritos de Mahfuz, quase todos, exibem o ponto final antes da apoteose, num laconismo explícito, afrontando as expectativas do leitor.

Talvez por sua carreira como jornalista, o autor concentra suas energias mais num retrato analítico das relações humanas entre os moradores de sua viela de referência do que em episódios grotescos e exclamações.

Embora todos os fatos ali narrados sejam realmente grotescos e surpreendentes, seu tom sugere que ignoremos os pretextos e prestemos mais atenção à amostragem simbolizada num beco de moradores malucos.

Advindo de uma tradição literária vinculada ao político e ao social, Mahfuz se curvou às enormes mudanças que a Revolução Egípcia de 1952 causou em seu país e optou por, pouco a pouco, entender que é o próprio comportamento humano individual que deflagra os fluxos e refluxos gerais da humanidade.

Daí a viela, cujos sussurros não são consequências do medo, como por exemplo em "Sussurros" de Orlando Figes, que retrata a vida na Rússia durante o domínio stalinista.

Um falso silêncio, de uma forjada discrição, um mar de falsidades regem as convivências no que parece ser o bairro de infância do escritor, cujo livro mais controverso é "Os Filhos do Meu Bairro", de 1951. Essas narrativas foram publicadas inicialmente num jornal do Cairo —"a língua oculta da viela sussurra suspeitas e transmite segredos".

E, afinal, qual é o efeito que "O Sussurro das Estrelas" surte em seus leitores?

Em primeiro lugar, diante de assassinatos abruptos e não esclarecidos, noivados desfeitos, dons paranormais adquiridos por mendigos e a eterna suspeita que recai sobre os seres não humanos que residem no velho forte ao lado, o espanto.

Parece que mergulhamos num universo ao mesmo tempo antigo e fantasioso, oscilando entre o evidente histórico e o oculto. Naquele Egito inexistem limites do bom senso. E nem é necessário galgar o alto das pirâmides.

ilustração de cidade
Ilustração na edição da Carambaia para o 'O Sussurro das Estrelas', livro de contos do escritor egípcio Naguib Mahfuz - Divulgação

A seguir, a constatação de que mais uma vez o escritor russo Liev Tolstói estava perfeitamente certo –fale de sua aldeia e você será universal. Pois os meandros mentais que levam o ser humano a evoluir ou regredir, a alcançar suas metas ou falir, a ser rico ou pobre, feliz ou infeliz são totalmente comuns a todos. Seja naqueles tempos, seja agora.

Então Mahfuz nos leva a uma identificação estranha com personagens tão distantes em sua geografia e época quanto próximos em semelhança.

Não é exatamente o que se espera de um grande livro. Nem pode ser elucidativo em relação à obra vasta do escritor, a qual proporcionou a ele o Nobel. Mas permite que o pensamento voe para dentro de nós, onde moram conflitos e contradições que poderiam estar tanto nos habitantes da viela quanto de uma avenida de uma grande cidade do século 21.

Mahfuz nasceu em 1911, portanto acompanhou boa parte do século passado —recordista em grandes mudanças entre os homens. Fez jus a sua verve jornalística ao retratar os abalos e a seu talento de ficcionista ao os condensar em histórias curtas e densas.

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