A continuidade entre “Acqua Movie” e o anterior “Árido Movie”, de 2005, é evidente —em ambos, o Sul e o Norte, ou o Sudeste e o Nordeste, se encontram. No “Árido”, alguém sai do Rio de Janeiro para visitar a família, numa cidade do interior de Pernambuco. Desta vez, o migrante, um apresentador de telejornal conhecido nacionalmente, sofre um infarto e morre logo na sequência de abertura.
O ressentimento do filho, digamos, ocupa toda a parte inicial do filme, e talvez não seja exagero a chamar de um tanto acadêmica. Lírio Ferreira se detém durante minutos na aspereza inicial dessa relação. Não é esse o problema, e sim o caráter nada inventivo ou sintético desse segmento. As imagens não vibram: obedecem a convenções.
Logo, felizmente, vem a viagem —que mãe e filho fazem juntos, claro— e chega-se a Nova Rocha. Ali está a família do pai de Cícero, que, por sinal, é quem manda na região. Ali se destaca seu tio, o prefeito da cidade. O jogo de sedução em torno de Cícero opõe Duda aos parentes do ex-marido. E o prefeito é um tipo excelente, tão afável quanto ameaçador.
Ou, se se prefere, a disputa se dá entre a razão sulista contra o uso e abuso do poder que o filme verifica no interior de Pernambuco. O abuso do poder se deixará ver pela ação dos jagunços a serviço do tio, cujo objetivo central é tomar assim que possível a terra onde vivem os índios. Não por acaso, ele acredita que a família chegou ao lugar antes dos próprios índios.
Do lado da razão temos os argumentos de Duda –o pai nunca gostou da família, nunca quis voltar ou rever os parentes, são gente perigosa et cetera.
No meio disso estão, obviamente, as águas. Águas que simbolizam aqui o novo Nordeste, assim como o nome Nova Rocha deriva do fato de a cidade original, Rocha, ter sido submersa para que se construísse no lugar uma represa. Águas que provêm, em grande parte, da transposição do rio São Francisco. Elas é que parecem garantir um interior sertanejo próspero, moderno e, claro, atrasado.
A parte pernambucana do filme é, de longe, a mais interessante. A mais inventiva também. Com apenas um plano sabemos que o menino está vendo um canal da transposição. Mais três planos de aparelhos eletrônicos e já sabemos o essencial sobre Nova Rocha (ou novo Nordeste), moderno e caipira. Uma rápida intervenção dos jagunços em uma manifestação dos índios e sabemos de que lado está o poder local. Et cetera.
De que lado ficará o jovem? De seus parentes, com a galeria de retratos ameaçadoramente ilustres, ou de sua mãe, para quem a existência dos índios significa conhecimento e progresso, e não o inverso?
Com isso, podemos dividir “Acqua Movie” em duas partes distintas, que seguem a introdução, por sinal bastante sintética e eficaz na sequência de um tormentoso telefonema entre o pai e a mãe de Cícero, seguida da constatação de sua morte.
Em cada sequência, a luta pela alma de Cícero está em questão. O que parece fazer do menino uma bela e atual metáfora do Brasil atual. Ele parece encarnar um jovem país que não sabe o rumo a tomar –se o de uma difícil evolução fundada na razão ou o do caminho de um poder fundado na ignorância e no atraso. Assim se define o combate que parece ocupar Lírio Ferreira –não entre Norte e Sul, mas entre luz e trevas.
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