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Diretor em Cannes lembra Bolsonaro e tiranos atuais ao falar de filme do Holocausto

Ucraniano Sergei Loznitsa lança documentário sobre massacre de 34 mil judeus numa única noite em Kiev

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Rio de Janeiro

Para um evento histórico tão tenebroso, é estranho que se fale tão pouco sobre o massacre de Babi Yar. Ou talvez não tão estranho assim —por décadas, tanto o governo soviético quanto o alemão preferiram silenciar sobre a trágica noite de setembro de 1941, na Ucrânia ocupada, quando ao menos 33.771 judeus foram exterminados por militares nazistas.

Uma mudez por razões políticas, é certo, mas sobretudo por algo de natureza mais universalmente humana. “As pessoas sempre ficaram desconfortáveis, justamente porque foi tudo muito assustador e vergonhoso”, diz o cineasta Sergei Loznitsa, que traz nova luz ao episódio no documentário “Babi Yar. Context”.

O filme está sendo exibido fora de competição no Festival de Cannes, de onde o cineasta deu entrevista por vídeo. O longa é todo composto pelo que se costuma chamar de “found footage”, imagens de terceiros, encontradas em arquivos —no caso do filme, geralmente cenas registradas por militares alemães com câmeras amadoras, durante a ocupação do território ucraniano.

O material não tinha som original, o que exigiu um trabalho meticuloso de recriação sonora. “Quis trazer o espectador para dentro do que acontece”, afirma o diretor. “Quando se inclui música ou uma voz narrando, um escudo acaba sendo providenciado, uma certa proteção do público diante do impacto direto das imagens. Mas, aqui, eu preferi fazer o público sentir mais de perto as imagens.”

Desde 2016, existe em Kiev um memorial no lugar onde tudo aconteceu. Babi Yar é uma ravina no norte da capital ucraniana, uma espécie de desfiladeiro raso que por muito tempo foi um local ermo, visto como um terreno esburacado sem maior potencial de uso.

Em 1941, pouco antes de as tropas soviéticas abandonarem às pressas a cidade devido à fulminante chegada alemã, espalharam bombas em vários locais estratégicos. Já fora da capital, detonaram os explosivos —matando, inclusive, civis ucranianos. Os nazistas recém-chegados, é claro, não ficaram muito contentes com a recepção e resolveram retaliar.

Foi quando finalmente viram uma finalidade para Babi Yar –seria o lugar perfeito para jogar corpos de cidadãos indesejados. Conclamaram todos os judeus de Kiev, dando a entender que seriam transportados para fora da cidade. Mas, em vez de encontrar um trem, os prisioneiros se viram diante dos penhascos da ravina —mortos a tiros, seus corpos caíam empilhados, um sobre o outro. Bastou apenas aos nazistas jogar um pouco de terra sobre os cadáveres.

O filme traz imagens fortes, mesmo que as cenas da noite do extermínio em massa, em si, não apareçam; vemos só fotografias de pilhas de roupas dos assassinados pelo chão de Babi Yar.

“Até onde sei, não existem imagens daquela noite”, diz Loznitsa, que afirma que até poderia ter usado algumas caso fossem encontradas, ainda que pesadas demais. “Eu teria que ver as imagens para julgar. De qualquer modo, mais do que uma imagem, é mais importante sempre a maneira como ela é usada em um filme”, afirma, revelando bastante sobre sua concepção criativa.

O longa, como diz o nome, se preocupa muito em contextualizar o massacre. O grosso é de cenas da ocupação alemã, a partir de 1941, e a retomada soviética do território, já dois anos depois. Há também alguns trechos de depoimentos de testemunhas nos julgamentos pós-Guerra —num deles, especialmente tocante, uma sobrevivente relata como escapou.

Outro trecho que exige estômago acontece já perto do final. Vemos os comandantes nazistas, agora reféns soviéticos, condenados à forca em praça pública. Os enforcamentos são terríveis, mas Loznitsa diz que isso não é o que mais o incomoda no material.

“O que eu acho mais chocante ali é ver um grupo enorme de pessoas que se une para assistir àquilo. Parecem muito curiosas, entusiasmadas, eufóricas por testemunharem aqueles assassinatos”, diz. “Os enforcados se foram, mas os que ficaram olhando, sedentos, continuaram vivos. Isso é bem assustador.”

E muito desse pensamento “justiceiro”, linchador, segundo o cineasta, segue existindo até hoje, assim como houve o recrudescimento de governos autoritários.

Lembrando lideranças como Jair Bolsonaro, o bielorrusso Alexandr Lukashenko e o húngaro Viktor Orbán como “tiranos contemporâneos”, o cineasta acredita que muito do que fazem não deixa tanto a desejar aos que praticaram as atrocidades do passado. “Eles existirem [como lideranças] mostra o fato preocupante de que as pessoas não se organizam, não criam uma situação de segurança de modo que pessoas assim não cheguem ao poder.”

Mas o cineasta diz ser possível manter algum tipo de otimismo quanto a um futuro mais pacífico e produtivo. “Ao mesmo tempo em que a humanidade produz pessoas como essas [Bolsonaro, Lukashenko e Orbán], também já produziu Cervantes, Shakespeare, Chopin. Então, alguma esperança acho que nós podemos ter”, diz.

Embora o cineasta diga que seu filme possa ser relevante para o que se passa no Brasil hoje em dia, “Babi Yar. Context” ainda não tem previsão de estreia no país.

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