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Entenda por que somos obcecados por reality shows sobre a vida dos super-ricos

Filão ganha força na TV e no streaming num momento em que a pandemia faz delirar com sonhos de luxo, glamour e riqueza

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Ilustração mostra num pôr do sol, um diamante no alto, dele desce uma luz sobre Kim Kardashian, que está sentada no capô de um carro. Em volta de la mãos tiram fotos com o celular, Kim Lee recebe aplicação de botox na testa, iates e mãos com anéis de diamante seguram taças de champanhe

Ilustração de Carolina Daffara Carolina Daffara

Daniel de Mesquita Benevides
São Paulo

“Império da Ostentação” estreou em janeiro e já está entre os programas mais vistos da Netflix. O reality show mostra o cotidiano de milionários de origem asiática em Los Angeles. O nome já diz tudo —para os personagens, mais é mais. É pelo excesso que eles definem e exibem a sua personalidade.

O fato de serem nascidos no Japão, na China, no Vietnã ou em Taiwan, ou terem laços com esses países, é simbólico de como a pujança econômica do leste da Ásia vem transformando a cartografia social.

Kevin Kreider, condutor do reality, é modelo e, ao contrário dos demais participantes, ainda busca um lugar ao sol. Sul-coreano, foi adotado por uma família de brancos na branca Filadélfia. Viveu o racismo ditado por americanos que ainda veem nos asiáticos os inimigos de guerras passadas e outras mais recentes. Simpático, ele não parece ser o arrivista clássico.

Seu melhor amigo, Kane Lim, tem em casa uma parede enorme coberta de tênis de marca. Numa cena, ele faz meditação budista diante de um urso de pelúcia gigante. As muitas joias no pulso e no pescoço faíscam e fazem ruído. O universo da ostentação é naturalmente bizarro.

Nessa fantasia iluminada pela fada da fortuna, duas rainhas disputam o trono de Beverly Hills. Aos 60 anos, Anna Shay ganha atenção pela imprevisibilidade. Nascida em Tóquio, filha de um comerciante de armas, ela não hesita em tirar a roupa na frente das câmeras para roubar a cena.

Sua rival e amiga nas aparências é a taiwanesa Christine Chui, casada com um suposto herdeiro da dinastia Song da China. O futuro imperador é também um cirurgião plástico. Ela gasta o dinheiro do marido em festas suntuosas e viagens súbitas a Paris, por capricho, arrecadando um séquito de novos admiradores pelo caminho.

“Império da Ostentação”, ou “Bling Empire”, no original, surgiu da cabeça de Jeff Jenkins, entre outros. Não por acaso, ele é um dos produtores de “Keeping Up with the Kardashians”, exibido pelo canal E! e pela Amazon Prime Video, que estabeleceu o sarrafo para os realities de super-ricos, fenômeno televisivo que gerou muitas variantes e spin-offs. Nos Estados Unidos já está na 20ª temporada, a despeito da enxurrada de críticas negativas. Falem mal, mas falem de mim.

Inspirado na comédia romântica “Podres de Ricos”, de Jon M. Chu —baseado, por sua vez, no best-seller “Crazy Rich Asians”, de Kevin Kwan—, “Império” foge um pouco do óbvio ao destacar tradições ancestrais, como o Ano-Novo chinês, e a afirmação da identidade cultural de seus personagens, que são pessoas reais.

Não é tão barraqueiro quanto “Mulheres Ricas”, da Bandeirantes, que contava com a afetação espalhafatosa de Narcisa Tamborindeguy e Val Marchiori, nem moderninho como “Alto Leblon”, do E!, com seus jovens influenciadores digitais, para lembrar dois dos programas nacionais que andaram por essa linha.

Na opinião da socióloga Silvia Viana, da Fundação Getúlio Vargas, não há nada de diferente, de fato, nos realities dos super-ricos em relação aos realities mais tradicionais.

“É a mesma lógica perversa da competição imposta pelo capitalismo, de ver quem tem mais, quem pode mais”, diz. Autora de “Rituais de Sofrimento”, da Boitempo, livro que trata, em linhas gerais, dos realities como reprodução cruel da precarização do trabalho e da vida, ela afirma que “nos tornamos capital humano, ou empreendedores de nós mesmos”. E considera o consumo narcísico exibido nesses programas como “uma experiência submetida ao cálculo da autovalorização”.

Rodrigo Carelli, diretor de “A Fazenda” e de “Ilha Record”, com Sabrina Sato, com estreia marcada para 25 de julho, acha, por sua vez, que os milionários “têm prazer em se expor, em falar o que pensam, sem limites”. É o que dá contorno aos personagens. “As pessoas que tentam disfarçar o indisfarçável são tidas como falsas”, ele acrescenta.

Os reality shows nunca tiveram tanta repercussão como na pandemia. É impressionante a intensidade com que as pessoas se posicionam sobre os programas nas redes sociais. Virou uma questão de vida ou morte”, ele diz, sobre o sucesso dessas atrações junto aos espectadores.

No ouvido das candidatas a majestade de Los Angeles, a frase tem outra ressonância. Cada sorriso pode ser uma facada nas costas. “Os realities reproduzem a ideia de que não há espaço para todos, e portanto precisamos nos eliminar para sobreviver”, afirma Viana, lembrando que isso também se aplica ao mundo dos milionários. A lógica é hobbesiana —o homem é o lobo do homem, nesse caso, um lobo com pele de vison.

Essa disputa é posta mais às claras em “Sunset - Milha de Ouro”, também da Netflix. O reality mostra lindas corretoras de imóveis tentando vender mansões de até US$ 100 milhões nos bairros mais nobres de Los Angeles. É outro filão dos chamados docu-realities, ou a vida real roteirizada. Como “The Real Housewives of Beverly Hills” —e sua franquia de Nova York—, tem um subtítulo, nada sutil, “Vida, Liberdade e Riqueza”. O lema, no entanto, poderia ser “parece que tenho tudo, mas quero mais”.

A audiência, presa em casa, e portanto suscetível a todas as fantasias do mundo, também parece querer mais.

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