Homens pelados tomam a internet após pioneirismo das fotos de Alair Gomes

Referência na fotografia homoerótica, que completaria cem anos, é influência de artistas contemporâneos do país

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Matheus Lopes Quirino
São Paulo

Há os que chamam de Ilha da Magia a paradisíaca Ilha Solteira, estância turística no norte do estado de São Paulo. Ali, desfila o jovem Nicolas Falcão, um moço bem talhado de olhos verdes e algumas tatuagens pelo corpo que aos poucos se distensiona conforme o fotógrafo Naur Cavalcante o descontrai com brincadeiras e truques.

À frente do Projeto Individual, Cavalcante segue os passos de um fotógrafo que viveu muito antes das redes sociais ou da pirataria na internet.

Há 50 anos, nos fundos de um apartamento da rua Prudente de Moraes, no Rio, um voyeur se esmerou em retratar o burburinho da juventude e, principalmente, seus corpos. O endereço era de Alair Gomes, fotógrafo precursor do homoerotismo no país.

A silhueta masculina é escanhoada quase milimetricamente na obra deste prodígio da matemática, enfatizando os contornos, dobras, músculos e pelos.

Em seus cliques mais conhecidos, dos rapazes se exercitando na praia de Ipanema, o realismo é explícito, numa narrativa de culto ao corpo masculino. É uma fotografia hedonista, que deu status de arte à figura do surfista.

Influenciado por pioneiros como Herbert List, que fotografou banhistas em grutas e praias europeias, Gomes esculpiu em seus retratos o ideal da escultura clássica greco-romana, através da repetição de um ideal de beleza.

O mesmo ocorre hoje, cem anos depois do nascimento de Gomes, em revistas alternativas como Individual, Cactos e Snaps, entre outras.

No Twitter e na plataforma OnlyFans, o fotógrafo Ciro MacCord, que é seu próprio modelo, se amarra em cordas e fica à mercê de arames. Seu corpo é dessacralizado e sua beleza se torna terrena.

Nas interações entre duplas, como nos trabalhos de Naur Cavalcante, cada sessão abre caminhos em que a experimentação e cumplicidade marcam o processo criativo de fotógrafo e modelo.

O atendimento personalizado faz com que o fotógrafo conheça a história do seu consumidor e de seus modelos. As publicações acabam parando em livrarias alternativas, dedicadas a fotografia e arte.

Desde o começo da pandemia, Cavalcante diz que as vendas de revistas aumentaram. “Com a galera em casa, muita gente começou a colecionar, apreciar e interagir com o projeto e os modelos nas redes”, conta. O fôlego extra se mantém apesar da enxurrada de material gratuito na internet. Diferentemente dos nudes do OnlyFans e do Twitter, cada revista carrega uma história individual e provocante.

Cavalcante nasceu em Ilha Solteira e agora está em seu estúdio do outro lado da divisa estadual, em Três Lagoas, interior do Mato Grosso do Sul, onde mora e edita as fotos que tirou de Falcão.

A experiência de criar uma revista é um sonho antigo. Tendo trabalhado como designer e fotógrafo, ele conta que a ideia de começar a retratar homens pelados veio por causa de uma chefe.

“Ela fotografava mulheres, artística e sensualmente, mas eu não queria competir, então percebi que poderia fotografar os meninos. Naquela época não existiam tantos projetos assim”. Ele começou
sem pretensões, há cerca de quatro anos. A primeira revista experimental deu certo e o projeto foi capitalizado.

Hoje, Cavalcante afirma que modelos desconhecidos vendem mais do que os que são populares no Instagram, sua principal plataforma de divulgação. “Às vezes alguém que tem 700 seguidores faz mais sucesso do que um que tem três milhões”. Falcão, um dos últimos fotografados pelo projeto, é um deles, com pouco mais de 7.000 seguidores.

No último dia 27, o Instagram tirou do ar, pela segunda vez, a página da revista, restando uma outra de backup.

Se a censura antes vinha de governos ditatoriais e mordaças conservadoras —vide o próprio Gomes, que debutou em solo americano nos anos 1970 mas só expôs no Brasil nos anos 1980, quando o regime militar arrefeceu—, hoje ela se dá pelos padrões moderadores dos aplicativos.

Sendo tênue a linha entre pornografia e arte, o jeito é publicar as fotos com o maior cuidado possível. “Se fosse na Roma antiga, todas as estátuas clássicas seriam demolidas pelo filtro do Instagram”, completa Cavalcante.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.