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Artes Cênicas

Isabelle Huppert tem atuação controversa em montagem de Tchékhov

'O Cerejal', dirigida pelo português Tiago Rodrigues, embaralha tempos e antevê um período de grandes mudanças

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Viviane Dias

Dramaturga, atriz, diretora de teatro e jornalista

O Cerejal

  • Elenco Isabelle Huppert, Isabel Abreu, Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo
  • Direção Tiago Rodrigues

O majestoso cerejal, de Anton Tchékhov, encontrou, no paredão secular do Cour d'Honneur, do Palácio dos Papas, edifício dedicado às peças mais esperadas do Festival de Avignon, uma deliciosa irmandade metafórica.

Contrasta com o rock na chegada do trem que marca o início explosivo da montagem de Tiago Rodrigues e a síntese do moderno cenário —três cerejeiras-lustres metálicas deslizantes sobre o palco e cadeiras que criaram e destruíram eras.

No texto, a casa dos irmãos Liubov e Gaiév, aristocratas falidos, está hipotecada. E, junto, seu cerejal centenário, nutrido por gerações de servos.

A peça começa com um reencontro depois de anos, entre Liubov e sua comitiva que foi para Paris e o irmão e os que ela deixou na Rússia. Entre os últimos, está Lopákhin, novo rico que oferece ideias para salvar a propriedade dos ex-patrões. Mas não há possibilidade de diálogo —cada um habita um mundo e seus sentidos.

Em Tchekhóv, prestamos atenção não só ao que está escrito, mas à forma como está escrito. As frases enxutas, as elipses, são um convite à descoberta das ações, relações escondidas, uma verdadeira linguagem que parece zombar dos dramas. Em vez da tragédia com a perda da casa, temos a festa. Cada personagem é um planeta. E o tempo, talvez o grande protagonista.

Numa das melhores cenas da peça, Lopákhin, papel de Adama Diop, que vive o que nenhum de seus antepassados imaginou, comanda uma desmontagem da pirâmide de cadeiras que une todo o elenco.
Não se nega a agir diante de brechas insólitas que tempos de transição abrem —e não só uma propriedade será sua, mas uma nova época. O próprio tempo rítmico do terceiro para o ato final se acelera, antecipando as grandes mudanças do século 20 e nos fazendo pensar em nosso mundo. A escolha de Rodrigues é nítida —não a nostalgia, mas a excitação pelo desconhecido.

É, porém, um dos poucos momentos em que sentimos o grupo junto. Na última peça de Tchékhov, todo conflito é lúdico, com aristocratas ou filhos de servos, em diferentes posições de jogo, sim, mas que, por suas ações (ou pela falta delas), criam as condições ideais para a mudança.

Existem encontros marcantes. A despedida de Vária, filha adotiva de Liubov, sem palavras —numa caminhada no gigantesco palco, evocam emoções reprimidas e tudo aquilo que poderia ser e não foi, e que contraria toda a expectativa, como a vida. São ótimas relações ator-personagem de um elenco diversificado, que generosamente empresta de si e oferece o século 21 aos papéis.

No caso de uma das criaturas mais amadas do russo, a governanta de truques mágicos, Charlota, papel de Isabel Abreu, nos deliciamos com os lugares insólitos de onde sai a voz de seu boneco. Mas talvez mudanças feitas por Rodrigues tenham atenuado o peso paradoxal de sua solidão.

A maior controvérsia entre críticos foi a Liubov vivida por Isabelle Huppert. Há muito de inquietante e elegante em seu esboço, mais do que qualquer tentativa de fusão com a personagem. E uma recusa ao se revelar em cena que, ao mesmo tempo que nos provoca, nos priva de uma grande chave da personagem, o amor.

Se pusermos juntas todas as falas de Liubov, emerge um centro impossível de fugir. Ela ama. Essa presença no mundo através do amor nos faz falta em Huppert, que parece limitada por uma ideia de melancolia ou de alienação dos acontecimentos.

A montagem, entretanto, nos traz Tchékhov naquilo que tem de vital. As personagens podem parecer pessoas num mundo cotidiano. Mas "O Cerejal" é um truque-dispositivo, como os de Charlota, que embaralha os tempos e alimenta períodos de grandes mudanças. Tiago Rodrigues, o futuro diretor do Festival de Avignon, evoca e dá sinais desse mundo que está por vir.

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