Descrição de chapéu Artes Cênicas

Dramaturgo Tiago Rodrigues vem a festival de teatro horrorizado com Bolsonaro

Destaque na MIT, português diz que está disposto a usar a arte como contraposição ao atual momento no Brasil

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Guilherme Henrique
São Paulo

Na última vez que esteve em São Paulo, o dramaturgo português Tiago Rodrigues fez jus à máxima que criou para si —dar mais atenção às palavras do que às pessoas. 

Entre as recordações daquela viagem, destacou seu enorme assombro ao descobrir a literatura de Raduan Nassar. “Li ‘Lavoura Arcaica’ três vezes seguidas”, contou, antes de admitir certa vergonha por não conhecer o vencedor do prêmio Camões de quatro anos atrás.

A relação com os livros, não por acaso, está no âmago daquilo que o diretor traz ao retornar à capital paulista como o principal artista da Mostra Internacional de Teatro, a MIT, que começa nesta semana.

“Eu era um daqueles meninos que imitava todos os poetas que lia. Muito antes do teatro, da palavra falada e do palco, a leitura e a escrita eram o meu alimento espiritual de relação com o mundo.”

Tal devoção às letras foi estimulada na intimidade e ancorada a laços familiares. A avó Cândida, cozinheira durante toda a vida em Trás-os-Montes, província no norte de Portugal, era uma leitora voraz, capaz de recitar trechos de obras clássicas. 

Aos 93 anos, no entanto, a iminente perda de sua visão fez com que o neto recebesse uma incumbência —escolher um livro para que ela, ao ouvi-lo, pudesse decorá-lo.

A missão, recebida não sem algum transtorno, se tornou o tema de “By Heart (De Cor)”, peça criada há sete anos e que será exibida na MIT. “É algo que surge de um labirinto emocional e literário”, diz Rodrigues. 

Misturando diálogos reais com passagens de autores como Shakespeare e Boris Pasternak, a obra costura um diálogo constante com a memória, outro pilar criativo de sua obra. “A memória permite que eu me aproprie das palavras dos outros para falar do mundo, como se eu estivesse a falar.”

Nessa arte do encontro, com autores, textos e histórias, Tiago Rodrigues busca aprofundar as relações humanas, descortinar a complexidade de quem o acompanha no palco e também do público. 

“O teatro que eu faço é, por vezes, dito como plasticamente muito simples, rudimentar, com uma abordagem formal e despojada. Acredito que as estéticas mais complexas estão dentro das pessoas. Não me interessa fazer um teatro em que atores possam dar forma ao meu sonho, mas que eu crie condições para que as pessoas despertem formas e ideias que estão dentro delas”, afirma.

Há dez anos, e antes mesmo de se tornar diretor do Teatro Nacional Dona Maria 2ª, em Lisboa, Rodrigues teve mais um desses encontros que ele não esquece —e que sua criatividade acabou transformando em mais um espetáculo. 

Nos bastidores, na escuridão atrás das cortinas, viu Cristina Vidal trabalhar. “Era como se eu visse um dinossauro, um fóssil. Para mim, a profissão de ‘ponto’ estava extinta”, diz, ao lembrar o primeiro encontro com a profissional que há mais de três décadas vive de soprar no ouvido dos atores trechos do texto interpretado.

Criada a partir da efabulação de muitas histórias que Vidal guardou ao longo das últimas décadas, a peça “Sopro” serve para, de alguma forma, pôr em evidência aqueles que estão à sombra do palco. É, na visão de Rodrigues, uma forma de provocar a sociedade contemporânea, “centrada no eu, eu, eu, mas que deve prestar atenção nas pessoas —e nas profissões— que só se realizam através do outro”.

“Sopro”, que também estará em cartaz na MIT, estreou há três anos no Festival de Avignon, na França, fato que deu ainda mais destaque ao nome do português na Europa.

O reconhecimento já vinha de “Bovary”, peça inspirada no romance de Gustave Flaubert. Traduzida para o público francês em 2016, ela foi escolhida então como obra do ano pela Associação Profissional da Crítica de Teatro, Música e Dança da França.

O sucesso para além das fronteiras lusitanas continua. Nem por isso o dramaturgo pretende se desvencilhar do que lhe é próximo ao se aventurar em companhias de outros países. 

Convidado pela britânica Royal Shakespeare Company para desenvolver uma peça inédita, Tiago Rodrigues vasculhou a obra do Nobel de literatura José Saramago. 

As adaptações de “Ensaio sobre a Cegueira” e “Ensaio sobre a Lucidez” são a base de “Blindness and Seeing”, com previsão de estreia em agosto deste ano.

“Esse projeto surge ancorado na vontade da companhia de receber artistas continentais para, por meio da criação artística, contrariar aquilo que parece ser no Reino Unido um enclausuramento e uma separação não apenas política, com o brexit, mas também nas mentalidades e na cultura”, afirma.

Sem se preocupar em construir arte engajada, Tiago Rodrigues usa o teatro também para instigar a reflexão, amparado pela liberdade criativa e pelo pensamento livre. “O teatro que me interessa é muito parecido com o mundo que me interessa —democrático e com respeito às pessoas.” 

Diferentemente do que aconteceu há três anos, quando cancelou sua participação no Israel Festival, por ser crítico ao modo como aquele país lida com a Palestina, o português vem ao Brasil se dizendo horrorizado com o cenário cultural brasileiro sob o governo de Jair Bolsonaro, mas disposto a usar a arte como contraposição ao atual momento.

“Nós cuidamos da criação artística há muito tempo, seja num regime autoritário ou numa democracia. No entanto, é inaceitável a ingerência em instituições públicas ligadas à arte por parte das autoridades e do poder político. É um momento muito duro para os artistas brasileiros, mas também para o povo brasileiro”, diz Rodrigues. “O ofendido desta atuação absolutamente censurável, para usar o termo da administração Bolsonaro, é o povo, privado do acesso democrático e livre à criação artística.”

Destaques da MIT 

By Heart (De Cor)
O espetáculo foi inspirado pela relação do diretor com sua avó, que tinha o hábito de decorar trechos de livros. Os diálogos misturam falas reais com passagens de autores como Shakespeare e Boris Pasternak 
Teatro Faap - r. Alagoas, 903, tel. (11) 3662-7233. 10/3 a 13/3: às 21h. 90 min. R$ 40. Ing. p/ mitsp.org

Sopro 
Nesta peça, o português revisita clássicos da dramaturgia e homenageia os bastidores das produções. A ideia surgiu após ver como trabalha uma profissional que sopra no ouvido de atores em cena trechos do texto interpretado
Teatro Sesi - av. Paulista, 1.313, tel. (11) 3528-2000. 105 min. 13/3 e 14/3: às 20h. 15/3: às 19h. Grátis. Ing. p/ mitsp.org

MIT
Qui. (5): para convidados. Sex. (6) a 15/3. Confira a programação e ingressos em mitsp.org

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