Descrição de chapéu Cinema festival de cannes

'Titane' incendeia Cannes com violência, cores fortes e orgasmos automobilísticos

Filme que concorre à Palma de Ouro é uma das histórias de amor mais desconcertantes já vistas no festival

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Cannes (França)

Fogo vivo recobre toda a lataria de um Cadillac reluzente. Pernas de mulher recobertas de meia arrastão amarela se abrem sobre o capô, ao ritmo de uma música possante. Alexia começa sua erótica performance de sexo ardente com o carro.

Segundo longa da diretora e roteirista francesa Julia Ducournau, 38, "Titane" incendiou essa edição do Festival de Cannes, onde concorre à Palma de Ouro. É uma mistura de drama, comédia, suspense, ação e ficção científica, violento sem derramar sangue e visualmente arrebatador, com suas quase abstratas grandes áreas de cores fortes.

Se é "uma história de amor e aceitação", como disse a diretora em entrevista durante o evento, é uma das mais desconcertantes que Cannes já viu.

Exótica e andrógina, Alexia tem uma sensualidade agressiva e faz questão de não esconder a estranha cicatriz sobre a orelha direita, resultado de um acidente automobilístico sofrido na infância.

Uma placa de titânio —metal resistente ao calor, que dá nome ao filme— foi usada para reconstruir o crânio. Arredia com os pais e calorosa com os veículos, suas contorções lascivas nas feiras de automóveis fizeram dela uma estrela do gênero, perseguida por fãs que lhe pedem autógrafos e selfies. Ou beijos, como um mais arrojado, repelido de forma brutal.

Alexia quase não fala. Age usando a haste afiada que prende seus cabelos, deixando um rastro de mortes que chamam a atenção da polícia.

São os carros que a atraem e lhe provocam orgasmos, dos quais ela sai com as coxas cheias de graxa e, na sequência, com uma barriga que endurece, dói e cresce. Interpretada pela estreante Agathe Rousselle, não hesita em tratar seu próprio corpo com a mesma ferocidade que trata os outros humanos, numa tentativa de aborto na qual seu espeto de metal é de novo a arma preferida.

Intensificadas por uma trilha sombria, as atrocidades de Alexia escalam até queimar os pais e ver-se obrigada a fugir.

Na estação, vê seu retrato falado em um cartaz de procura-se; no verso, a foto de Adrien, um menino perdido há mais de dez anos, e uma simulação digital de como seria hoje sua imagem.

Alexia vira Adrien, uma transformação flagelante, em que ela enfaixa com força os seios e a barriga —que não para de crescer— e quebra o nariz na pia do banheiro.

Esse desconjuntado garoto está sentado numa sala da delegacia quando Vincent, o pai de Adrien vem reconhecê-lo. O sessentão imponente interpretado por Vincent Lindon (experiente ícone do cinema francês) dispensa o teste de DNA; o que ele quer é o filho de volta.

O pai promete a Adrien que vai defendê-lo a qualquer custo, a ponto de matar quem o ameaçar, e leva a garota travestida para o quartel de bombeiros que comanda.

Um Adrien esquálido e evasivo se vê em meio a uma tropa de homens musculosos, alguns dos quais parecem apaixonados pelo chefe. Para fazer valer a admiração em um ambiente tão masculino, o comandante injeta anabolizantes em suas próprias nádegas cheias de hematomas.

Adrien é incorporado à rotina dos bombeiros, em uma sequência de ações coreografadas, com escapadas de humor. Numa delas, por exemplo, Vincent canta a "Macarena" para ensinar o filho a fazer uma massagem cardíaca e ressuscitar uma mulher.

Incentivado pelo pai a raspar o rosto para estimular o crescimento dos pelos, Adrien começa a formar um bigode, mas dos seus seios já pinga graxa e ela sente contrações. Manter sua identidade secreta torna-se impossível. As reações dos outros a isso, porém, são inesperadas.

Os 108 minutos de esquisitice passam sem esforço, adrenalizados pelas cenas catárticas, mas quem prefere uma experiência cerebral pode tirar dali dezenas de provocações sobre corpo, gênero, sexualidade, afeto e humanidade. Ducournau deixa bastante espaço para isso.

A francesa, que integra o coletivo 50/50, de ativismo pela igualdade de gênero e diversidade no cinema, conseguiu consolidar no festival deste ano o interesse que atraiu em 2016, quando levou à Semana do Júri de Cannes seu primeira longa, "Grave" (sepultura).

A história de uma estudante de medicina atraída pela antropofagia colocou a obra nas listas de estrelas do "novo terror" e lhe deu lugar na lista da BBC de 100 melhores filmes dirigidos por mulheres.

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