"Degeneração", de Fernando Bonassi, mantém a mesma escrita forte e exaltada de seu romance anterior, "Luxúria", de 2015, mas o tom é ainda mais alto, na voz de um narrador que expele revolta, violências e xingamentos em voz baixa ou em pensamentos.
É mais um cidadão degenerado em espaços carcomidos, desgastados de um subúrbio degenerado ocupado por italianos e seus descendentes degenerados num bairro cheirando a gordura, envolto na poluição da rica São Paulo.
Na véspera da eleição do presidente Jair Bolsonaro, o homem sabe da morte do pai que fugira do asilo de velhos e percorre, com nojo, a burocracia necessária para o tirar do decadente hospital dos italianos, levar o corpo ao cemitério e o cremar. Dia de que só quer escapar para aproveitar o feriado, "meter na minha esposa, bater nos meus filhos, viajar de carro, gastar dinheiro e viver a vida que me resta".
O pai foi tudo de ruim —informante da polícia, auxiliar de torturador, aplicou golpes em famílias pobres e mulheres abandonadas. Pai que se ocupava em casa de submeter a família a humilhações e na rua experimentava o prazer da extorsão. A alegria era o churrasco onde partilhava com amigos policiais o prazer de torturar animais, brindando ao que vão matar e comer.
Diante do cadáver nu do pai na bandeja do necrotério, velho, com pés imundos, o ódio se junta à repulsa e revê os piores momentos da vida de "classe baixa", da mãe ignorante e acuada, incapaz de reação, dos irmãos criados entre armas do sádico que os educara para o mal. Na hierarquia da miséria, a vizinhança de italianos e brasileiros incapacitados ia vivendo em meio a ruas ocupadas por prostitutas, travestis e humilhados.
No hospital encardido, o homem comum se enfurece com os formulários e protocolos, com os funcionários incompetentes, mas tudo isso é calado, gritado por dentro, "abano meu rabo como um cão esfomeado, como vocês, como todos".
Com o fim do pai e tudo que representava, com a velhice dos amigos de delegacia que acompanham armados a cremação, deveria surgir uma nova era.
Mas, no dia seguinte, será eleito "um capitão reformado do exército que sente saudade da ditadura e não gosta de mulher nem de veados, nem de negros, num governo de milicianos avalizado pelo Exército nacional". A degeneração continuará e o macho também violento com os seus palavrões não escapará da podridão moral que se espalha.
Bonassi, com este romance, dá continuidade à sua denúncia realista da sociedade, por vezes num tom de Ken Loach no filme "Eu, Daniel Blake", em que um homem comum é esmagado pelo neoliberalismo de um estado que não o protege. No lugar da solidariedade provocada pela ideia de "poderia ser eu" que o filme provoca, a intenção aqui parece ser provocar a fúria como forma de mobilização.
O momento da publicação do livro, no entanto, e o cumprimento das previsões de eleição do "malfadado candidato", amortece o funcionamento do realismo usado.
O horror dos hospitais sob os efeitos devastadores da pandemia, ofusca a indiferença reinante no hospital dos italianos. O governo não mais apenas despreza os pobres, mas compactua com suas mortes. A figura do pai desprezível e autoritário não dirige mais a família, mas sim o país.
Nem o realismo mais potente consegue dar conta de ficcionalizar os tempos que vivemos. Talvez por isso a literatura comece a recorrer a distopias para falar do Brasil.
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